Festa pagã, as suas origens enevoam-se nas brumas da memória colectiva. Alguns pretendem fazer remontá-la ao culto egípcio de Ísis, outros às festas gregas em honra de Dionísio, outros ao Baco romano. Certo é que se tratava de uma festa popular de regeneração, muito ligada à agricultura e associada à Páscoa, festa religiosa de origem igualmente pagã. Como sabemos, a Páscoa ocorre no primeiro domingo depois da primeira Lua Cheia do Equinócio da Primavera. Trata-se de uma festa móvel, porque o ciclo lunar não coincide com o ciclo solar. Já o Carnaval acontece 40 dias antes da Páscoa. Parece, por isso, ir de encontro às teorias que apontam o Carnaval como a última grande festividade de Inverno, que pretende preparar a solenidade de uma nova Primavera, de um reinício da agricultura e de uma nova geração da pecuária. 



A Igreja nunca assumiu o Entrudo, ou Carnaval, como festa religiosa, apesar de nunca ter conseguido combater essa festividade popular, mesmo durante a denominada «Idade das Trevas». O Carnaval organizado - no sentido em que é organizado por uma entidade, que estabelece regras e controla as iniciativas populares individuais - mais antigo que se conhece é o de Veneza, que remonta ao ano 1094. No Século XV, o Papa Paulo II autorizou a realização de um desfile de carros alegóricos, que incluía uma batalha de confetes, lançamento de ovos e corridas de cavalos, entre outros actos libertinos. No Século XVI, estas festas tornaram-se frequentes em França e por toda a Itália, com a realização de bailes de máscaras, modelo que conquistou o Reino Unido no Século XIX. No início do Século XX, esta festividade chegou a New Orleans e ao Rio de Janeiro. 



No Algarve, as festividades de iniciativa popular terão existido desde sempre, com muitos excessos à mistura, que muito incomodavam os bispos. A referência mais antiga a uma divergência entre o Bispo do Algarve e os foliões remonta ao bispado de D. Álvaro Pais (1334-1352), que, profundamente ofendido e insultado pelas tropelias que lhe fizeram durante o Entrudo, abandonou Silves, descalçou as sandálias no cimo de uma colina e amaldiçoou a cidade, refugiando-se em Sevilha, onde faleceu. Essa maldição tem sido vista como a causa dos vários flagelos e pestes que levaram à ruína da cidade no período medieval, ao ponto de ser referida nas Cortes portuguesas. De facto, os festejos de Carnaval não olhavam ao estatuto social das vítimas, como refere a crónica do périplo de D. Sebastião ao Algarve, em 1573, que, de visita a Ayamonte durante essa festividade, «não ficou nenhum dos que lá foram que não fossem muito bem servidos de laranjadas e caldeiradas de água de farelos, por ser dia de Entrudo». Mais tarde, esses mesmos excessos populares levaram o Bispo do Algarve D. Inácio de Santa Teresa a emitir uma Pastoral, em 1744, insurgindo-se contra as «indecências e escândalos na permissão das máscaras em algumas festas Eclesiásticas, vestindo-se as mulheres em traje de homens, e homens em traje de mulheres o que é abominável por direito Divino». 



Este seria o Carnaval «tradicional» e «popular», violento e provocador, que vigorou na região algarvia até ao aparecimento do primeiro Carnaval «civilizado».

Em 1906 foi organizado o primeiro Carnaval dito «civilizado» de Loulé. Às diversões de iniciativa individual, de pequenos grupos ou das colectividades que organizavam bailes de máscaras, juntou-se um desfile de carros alegóricos, onde seguiam pessoas mascaradas, acompanhadas por bandas musicais. Com o passar dos anos e o desenvolvimento tecnológico, os cortejos foram-se tornando cada vez mais vistosos, atraindo gente de todo o lado, convertendo-se num grande factor de atracção turística de Inverno.

Ainda na primeira década do Século XX realizaram-se batalhas de flores no rio Arade, uma organização portimonense ao estilo do Carnaval veneziano, que não terá vingado. 



Rapidamente o modelo carnavalesco de Loulé começou a ser replicado noutras localidades algarvias. Na década de 1950, várias localidades tentaram replicar, com algum sucesso o Carnaval de Loulé, com desfiles mediáticos. Certo é que, um pouco por todo o Algarve, muitas associações recreativas têm como ponto alto os bailes de Carnaval e esta festividade mantém-se activa na identidade popular.

Neste ano atípico, talvez pela primeira vez na história, não se realizará nenhum dos habituais carnavais civilizados, nem é suposto que os foliões saiam à rua, mas tal não significa o fim de uma tradição, mas apenas um «até já». Importante é que as associações que durante várias décadas têm vivido em função desta efeméride não deixem de ter um apoio extraordinário este ano, para que não se vejam obrigadas a fechar portas para sempre.

Afinal, a morte é uma solução demasiado definitiva para um problema que é temporário.

Nuno Campos Inácio é Editor e Escritor