Num outro tempo, lembro-me de todas as pessoas tratarem o meu pai por Sr. Cunha. Foi um apelido que também se colou à minha pele, na infância, na juventude e no serviço militar. Gostando e orgulhando-me do meu apelido, infelizmente, o passar dos anos fez-me perceber o efeito de um dos seus significados (figurado) no curso das nossas vidas: «pedido especial realizado por alguém a favor de outra pessoa».


Ao longo da história, nunca deixando de estar na ordem do dia, o tráfico de influências e a corrupção tornaram a cunha numa instituição. É fácil de entender o desejo de tantos de alcançar o poder, para assim poderem ter a influência de pedir ou conceder o tal almejado favor. Quantos de nós já não ouvimos a mafiosa frase: “Ficas-me então a dever um favor”?! E de favor em favor vão-se tecendo as tais teias e redes de influência que sustentarão um futuro já delineado e programado.

É comum tropeçarmos em crónicas e comentários dos arautos de serviço, onde referem não entender como é que alguns se sujeitam a candidatar-se a ocupar cargos públicos de direção e de chefia, auferindo tão pouco pelo seu sacrossanto sacrifício. É caso para desabafar: “Só alguém muito desatento ou com pouco senso não perceberá a razão, de alguns, para se sacrificarem tanto por todos nós!”.

Sabendo que não há «almoços grátis», muitas cunhas, pró-cunhas e contra-cunhas são colocadas em cima da mesa fora do horário de expediente. Nas mesas de alguns restaurantes eleitos, grão a grão se trocam favores que, a seu tempo, se revelarão preciosos. Ninguém pense que a suspeição chega para acabar com a corrupção. A história da jurisprudência que o diga! Meus caros, o tráfico de influências é como um edifício: constrói-se tijolo a tijolo e terá o tamanho que os incautos transeuntes (nós) permitirem.

Lamentavelmente, só nos é permitido descobrir alguns laivos de corrupção quando alguns «compadres e comadres» se zangam ou quando o (cada vez mais escasso) jornalismo de investigação nos revela autênticos folhetins novelescos. Como a memória popular é curta, seria bom recordar, de quando em vez, o nepotismo, o amiguismo, o clientelismo e outros sinónimos de cunha, todos eles indicativos do quanto foi, é ou poderá vir a ser fácil para determinadas elites obter empregos e promoções ambicionados pela maioria da população.

Algumas elites, desenvolvidas no interior de lobbies partidários ou de outros grupos de interesse organizados, entendem que, por questões meramente consuetudinárias, tudo deverá continuar a ser como («livremente») sempre foi. O tempo continua a passar e a cunha transformou-se na palavra-passe/senha/chave para transformar os mesmos de sempre nas famílias «donas disto tudo».

Vivemos num país onde a cunha ou o fator «C» direciona/condiciona o voto. De facto, dificilmente se consegue um emprego, a sua manutenção ou uma promoção por mérito próprio. No entanto, tal situação é facilitada quando se tem amigos ou familiares bem posicionados ou se pertence a um grupo privilegiado.

É caso para perguntar: “Qual é a taxa de desemprego de membros, familiares e amigos dos partidos que nos têm governado?”. Usualmente carreiristas de oportunas e oportunistas juventudes partidárias, acabam a vida a gravitar entre cargos políticos e o sector privado. Poder-se-á falar de uma forma de remuneração feita à medida dos poderes familiares ou políticos vigentes, causando necessariamente uma distribuição injusta dos rendimentos que penaliza o resto da sociedade. Inevitavelmente, são cunhas à medida dos «boys and girls» do costume, os tais que não precisam de chorar para mamar.

Com o maior acesso a licenciaturas e mestrados, a frustração é enorme quando se constata que a meritocracia como método de seleção de recursos humanos é parca e incipiente. Os traços atávicos de alguma mentalidade portuguesa fazem com que se continue a viver sob a influência mesquinha do amiguismo e do compadrio.

Tal como muitos de vós, gostaria que a palavra cunha tivesse na sociedade o peso e o efeito alavancador e estabilizador do seu significado (pedaço de madeira ou de outro material usado para nivelar objetos que não assentam por igual - calço). No fundo, usar o mérito como nível. Será pedir muito, caros leitores… e votantes?

Paulo Cunha é professor