“Por que razão evitar a palavra outrora?”, pergunta Lídia Jorge num texto sobre Sagres, em 2004. Leio a frase no momento em que penso em palavras que uso, ainda uso, mas perante interlocutores que as deixaram de usar e até de reconhecer. É uma das condições de se ser professor: a maioria das pessoas que tenho à frente, nas aulas, é pelo menos trinta anos mais nova do que eu; a cada ano, essa distância de tempo aumenta: eu envelheço, eles entram sempre com a mesma média de idades. Se sou eu quem muda, sou eu que tenho a mudança metida nesta engrenagem. Mas por que razão, pergunto, com Lídia Jorge, evitar as palavras?


Um dos textos que trabalho anualmente no começo da Primavera calha ser (e calha bem) o Prólogo que Geoffrey Chaucer escreveu aos seus Contos de Cantuária – um «livro» que nunca o foi em vida do autor, a quem aconteceu morrer no ano redondo de 1400, quando ainda não tinha fechado o ciclo daquelas histórias, talvez nem a metade tivesse chegado. Aconteceu assim. É o acaso. Ou, palavra que persisto em usar, mesmo se, pelo segundo ano consecutivo (será outra, esta...?) ninguém à minha frente a reconhece, ou afirma conhecer – o ocaso. Recorro a ela para esclarecer afinidades entre modos de narrar e sublinhar o fingimento poético (redundância – mais uma...?). O narrador entra a contar como abril é o mais manso dos meses, o que oferece a renovação anunciada, o que liberta a terra do frio seco do Inverno, aquele em que se ouve as melodias dos pássaros, o desenrolar da folha, por fim fora da terra, a vontade de sair pelas estradas em peregrinação santa. É assim, parece dizer, em todo o lado. Depois, antes do vigésimo verso, a direção do texto muda desta linha de generalidades sazonais e climatéricas, para um foco centrado numa situação particular: como, digo também tantas vezes, se uma câmara, num filme, abandonasse o plano geral do começo e entrasse na janela de uma casa. Seguem-se versos em que se mostra o interior de uma estalagem onde o narrador se encontra com mais 29 peregrinos que ali se preparam para pernoitar, já a caminho do lugar santo de Cantuária (onde esperam homenagear e agradecer a São Tomás Becket, ou Tomás de Cantuária): é o começo da história, porque ali decidirão os trinta, desafiados pelo estalajadeiro (ainda se usa, esta?), que cada um contará duas histórias a caminho do santuário e duas no regresso, «tales from the days of old» – contos de tempos idos. Este momento da narração abre com «Bifil», palavra do Inglês Médio que veio a dar o atual «befell», passado do verbo «to befall», sinónimo de «aconteceu». Aquilo que tento explicar nas aulas iniciais sobre este texto é o modo como o narrador faz para que pareça que o que vai contar tenha sido obra do acaso, finja e esconda o artifício poético, a artimanha de contar – para convencer qualquer leitor de que foi fora das palavras do livro tal como elas relatam. Então, chamo a atenção para a ideia de «cair», que está nesse verbo inicial: aconteceu, befell. Acontecer é o acaso – e, para reforçar que está em «befell» a ideia de cair, chamo para a aula o ocaso, a queda do sol. Pôr-do-sol todos reconhecem, é a expressão mais comum. Mas ocaso, uma palavra tão bonita, vai saindo de mansinho, como um sol que se põe – em vez de cair, de acontecer sem recurso, estrondoso tombo por trás da linha do mar, para o esconderijo dos montes, para lá das casas que os olhos alcançam, enquanto cegam para a noite de não saber.

Ana Isabel Soares é professora universitária


Foto: Vasco Célio