"Há certas coisas que não haveria mesmo ocasião de as colocarmos sensatamente numa conversa - e que só num poema estão no seu lugar".

Mário Quintana

Há muita coisa que não se consegue meter, sensatamente, numa conversa. E às vezes, nem a poesia dá conta de arranjar um lugar em que caibam tantos silêncios, tanta insensatez, tanta distância. Não está a ser fácil, mesmo que necessário, esse exercício da distância a que estamos obrigados. As palavras sobram, e soçobram os sentidos, mas há uma língua que pertence ao corpo e esta, agora muda, precisa encontrar um lugar de expressão. Estamos sentados diante de um ecrã. Falamos para um ecrã que nos devolve a voz e o nosso rosto, que nos enche de palavras, que nos permite até silenciá-las. Mas o corpo está adormecido, preso a uma cadeira, quase imóvel. Quase um móvel a mais no escritório ou na sala de estar. O corpo precisa expressar-se e, à distância, o gesto se torna difícil. Qualquer gesto, mesmo o necessário e vital. Qualquer gesto que nos salve de nós mesmos, dessa densa solidão composta de vozes e de rostos que nos visitam, mas que não permanecem. O corpo precisa de afago, de abraço, de outro corpo para realizar-se em plenitude. O corpo precisa de movimento insensato, não de caminhadas higiénicas ou de saídas essenciais. O corpo reclama o espaço fora, o espaço entre, está farto do espaço dentro. As aulas são um exercício monótono - uma voz que ressoa para um ecrã, quase sempre, mudo. As pernas agitam-se sob a mesa, as pernas querem exercer o direito de andar e de chegar ao pé do outro, e de olhar o outro de frente. O ensino também se faz a partir do corpo, que se movimenta, que caminha pela sala, que se agita e que escuta e perscruta o olhar de enfado ou de encantamento. O ensino se faz na proximidade. Podem dizer-me que as plataformas são o presente do futuro. Ou o futuro no presente. Mas eu sou da velha guarda. Daquela que fala com os gestos e que precisa de espaço, e de corpos em presença, para melhor atuar. O exercício da distância é muito duro. E não tenho a certeza de aprendermos alguma coisa com isso. Apenas que somos frágeis, e efémeros, e que só a palavra, e um ecrã a brilhar, não preenche todo o espaço. E que os corpos também precisam respirar.

Mirian Tavares é professora universitária


Foto: Victor Azevedo