“Há quem fale que a vida da gente
É um nada no mundo
É uma gota, é um tempo
Que nem dá um segundo
Há quem fale que é um divino
Mistério profundo
É o sopro do criador
Numa atitude repleta de amor
Eu só sei que confio na moça
E na moça eu ponho a força da fé
Somos nós que fazemos a vida
Como der, ou puder, ou quiser (…)”.
Gonzaguinha
“Você é minha memória inconsolável”, diz Petra Costa no documentário que realizou há 10 anos sobre a irmã, Elena, que escolheu morrer precocemente. Dizem-nos sempre, e nós repetimos às vezes, que tudo passa, que vira memória. O problema é que muitas destas memórias são inconsoláveis – doem sempre, como da primeira vez. Mesmo que não seja uma dor consciente, vive em nós, como algumas maleitas que nem parecem estar lá, mas que consomem o corpo devagarinho. Essas memórias consomem a alma, despertam, muitas vezes, quando dormimos e não nos deixam descansar. Voltam vezes sem conta, vestidas de muitas maneiras: todas inconsoláveis. A morte é inconsolável. mesmo que vire memória e que possamos homenageá-la, encená-la, tentar esquecê-la. Petra Costa diz, no filme, “eu encenei nossa morte para poder viver”. E a verdade é que (sobre)vivemos. Lembrei-me do filme Elena, e da frase da sua realizadora, das “memórias inconsoláveis”, porque este tem sido um ano, e ainda estamos em agosto, marcado por muitas mortes ao meu redor. De ex-alunos, de pais ou mães ou irmãos de amigos, de filhos, de avós, para além, é claro, dos mortos célebres que são revisitados pelas pessoas nas redes sociais no dia a seguir à saída da notícia da morte. Alguns já estavam «mortos em vida», esquecidos, relegados à lista daquelas pessoas que nunca sabemos se ainda estão vivas.
A morte é um tema delicado, e quando está perto de nós, pode mesmo tornar-se um tabu – como se não falar dela tivesse o poder de mantê-la à distância. Eu tinha muito medo dos mortos, de cemitérios, de possíveis fantasmas. O meu avô materno morreu na nossa casa, onde viveu os últimos meses numa cama de hospital, com acompanhamento constante. Eu devia ter uns 15 anos e decidi que ia enfrentar o medo dos mortos naquele dia. Acordei de madrugada com o barulho de pessoas a chegarem a casa, a prima médica confirmou que aqueles eram seus últimos momentos e decidi ficar ao seu lado, até ao fim. Ajudei minha cunhada a vesti-lo e desde este dia, a morte, no sentido físico e pragmático, deixou de me assustar. Os mortos não voltam, muitos deles porque não os deixamos partir, de tanto que doem as memórias inconsoláveis que deles carregamos. Não é fácil lidar com a morte, sobretudo a inesperada, pois indesejada ela será sempre, mesmo para os que têm muita fé e acreditam no céu, ou no inferno, ou em reencarnações. Queremos as pessoas que amamos ao nosso lado, vivas. Queremos que elas permaneçam para sempre, sabendo que o sempre é a nossa noção de tempo finita, que dura enquanto durarmos. Tenho imensa dificuldade em dizer palavras de circunstância às pessoas que perdem alguém, nenhuma palavra serve de consolo. Talvez o consolo possível seja o de ter vivido, pouco ou muito tempo, ao lado de quem já cá não está connosco, de ter amado, de ter partilhado a vida enquanto ela vibrava à nossa volta. De guardar as boas lembranças, de saber que a dor lancinante vai se amenizando, fica o vazio impreenchível, mas a vida, ela mesma, é tão intensa que nos convoca a continuar o caminho e a aproveitar cada segundo, como uma dádiva, como uma forma de homenagear os nossos mortos. Como uma forma de continuar, apesar de.
Mirian Tavares é professora universitária
Crónica publicada em:
REVISTA ALGARVE INFORMATIVO #352 by Daniel Pina - Issuu
Foto: Vasco Célio