Entro na aula de mandarim. Aqui, deixo de me chamar Dora, passo para o outro lado da secretária e o nome que me escolheram foi Gao Níng. Durante uma hora e meia habito uma nova pele, uma espécie de outra identidade incutida, esculpida por outrem. Poucos na turma sabem o meu verdadeiro nome, a não ser aqueles que já me conheciam fora das aulas. Os outros, quando me encontram na rua, é por Gao Níng que me tratam. E isto dos nomes foi para mim uma descoberta curiosa em terras do oriente. Nas minhas aulas, na Universidade de Macau, todos os alunos têm um nome chinês e um português. A certa altura, por ser mais fácil, comecei a tratá-los apenas pelo nome português. Depois, veio o pesadelo quando chegaram os momentos de avaliação e entendi que os nomes portugueses eram uma miragem, visto que nas pautas apenas constavam os nomes chineses. Ingenuamente, pensava que havia algum registo na secretaria ou correspondência entre os verdadeiros nomes dos alunos (chineses, claro) e os portugueses. Isso fez com que me surpreendesse o facto de uma aluna, no final de uma aula vir ter comigo para me comunicar que na aula seguinte já não se chamaria Celina, mas sim Egas. Eu mostrei o meu espanto e salientei que Egas era nome de rapaz. Todavia, a resposta dela foi: “Sim, mas eu quero”. Então, pensei nos entraves burocráticos que ela teria de enfrentar, numa terra que junta o refinamento, morosidade da burocracia portuguesa com a desconfiança chinesa, fazendo com que existam funcionários peritos em apalpar selos brancos, procurando neles algum breve relevo onde possa ecoar o fantasma da fraude. Porém, na aula seguinte, a aluna corrigiu na folha de presenças o nome de Celina para Helga, em lugar do anunciado Egas. Nessa altura ainda desconhecia que os estudantes poderiam mudar os nomes estrangeiros todos os dias se bem o entendessem.

Na verdade, esta questão dos nomes gerava por vezes equívocos nas aulas, visto alguns estudantes terem nome chinês, inglês e português. Não sei porquê, mas desconfio que o Fernando Pessoa poderia ter gostado de pertencer a uma destas turmas, palco aberto à encarnação das múltiplas personalidades, além do mais, oriundas de diversos países. Então, certa vez numa aula, lancei um tópico, relativamente ao qual uma aluna apresentou a sua posição. Para motivar o debate, perguntei à turma: “Concordam com a Lídia?” (Era esse o nome português da interveniente). Seguiu-se um silêncio que eu tentei quebrar, repetindo várias vezes a frase já dita, explicando, mas sem êxito. Até que um aluno do fundo da sala pergunta: “mas quem é a Lídia?”. Eu mostrei-me admirada, pois como era possível que não soubessem ainda o nome dos colegas, naquela altura do semestre? E foi então que outro estudante respondeu: nós conhecemo-la por Winnie, não sabíamos que também se chamava Lídia”.

No meu caso, embora não entenda onde foram as professoras buscar o nome «Gao Níng» (desconfio que aos dois nomes do meu apelido), aceito-o com a solenidade imposta por um verdadeiro baptismo. Sou uma entre quarenta alunos que ali estão para absorver, assimilar, tentar apreender sons e caracteres. Quanto a estes, aos caracteres, a preocupação é sobretudo no seu reconhecimento, na leitura – e a maravilha de olhar para um daqueles desenhos enigmáticos e atribuir-lhe um significado, como se de repente começássemos a ver algo que nos era vedado, é indescritível. No entanto, desenhá-los era trabalho árduo para quem como eu sempre foi desastrada, conseguindo em disciplinas de Desenho e Educação Visual atingir as honrosas classificações de Muito Mau. Com efeito, a nota mínima era «Mau», mas havia um ou outro professor que gostava de enfatizar o facto de a falta de qualidade superar em muito o pior imaginável e lá escrevia o «Muito Mau», ainda acrescentando a algumas proezas minhas um ou outro comentário. Ainda me lembro de ao lado de uma elipse tão cuidadosamente desenhada, surgir a pergunta, a vermelho, com maiúsculas, “O QUE É ISTO?”. Nos tempos que correm, uma situação destas valeria um profundo trauma para o aluno, muitas sessões de terapia à mistura e, provavelmente, um processo disciplinar para o professor. Mas os tempos eram outros. Só que é esse tempo que me aflora à memória quando a professora de mandarim olha para a minha folha e solta uma gargalhada ao contemplar o caracter torcido, coxo que acabei de escrever. Nesses momentos, sinto-me grata por ter nascido a Ocidente. Tenho a suspeita, quase vestida de certeza, de que se o meu berço tivesse sido a China, seria analfabeta, pois, muito dificilmente aprenderia a escrever. Ao mesmo tempo, redobro a admiração por aquela gente que transpõe a sua visão do mundo através de casulos de ideias contidos num caracter.

É que uma língua não é apenas a substância através da qual comunicamos, nos exprimimos, mas também a matéria através da qual somos, a massa com a qual moldamos os nossos modos de existirmos, de interagirmos. E imagino como seria tão diferente se tivesse sido gerada no útero de uma língua tonal, fixada por misteriosos caracteres. Olho o relógio na parede. Faltam dez minutos para deixar de ser Gao Níng e regressar à minha pele. Ser outra é uma experiência provisória, renovada em cada aula de mandarim, tal como fluida, em constante reformulação, é a própria identidade: casa ampla e aberta, mobilada pelas línguas que nos visitam, que se demoram em nós, a vaguear por entre os pilares da nossa existência.

Dora Nunes Gago é professora