Contenho dentro de mim uma bússola avariada (ou um GPS defeituoso, para ser mais actual), algo que aprendi a assumir sem vergonha. Na verdade, co-habito há meio século com esse sentido de desorientação e espero que continuemos juntos por muitos e bons anos. Aliás, até já mencionei numa crónica passada em Londres, como contraponto ao «penso, logo existo» de Descartes, o meu «perco-me, logo existo». Com esta premissa, sinto que sou um desafio aos terraplanistas – visto que, com tanta volta que já dei pelo mundo e tantas vezes já me perdi, caso a Terra não fosse redonda, jamais teria conseguido regressar ao ponto de partida. Contudo, o mais curioso é com o avançar dos anos, ter descoberto algumas almas gémeas, tão munidas de desorientação como eu, embora muito raramente o assumam. Soube, por exemplo, que no outro dia de manhã cedo, em Aljustrel, uma senhora parou o carro para perguntar a um transeunte se faltaria muito para chegar a Portalegre, vinha de Lisboa… Há ainda o caso de uma amiga minha que, numa cidade desconhecida, enquanto o marido dava voltas a uma rotunda para perceber o sentido a tomar, ela, à terceira volta, exclama: “Olha, acho que começo a conhecer isto, já por aqui passámos!”.

A falta de sentido de orientação desencadeia situações embaraçosas – não se conseguir encontrar o carro depois de um jantar, porque se estacionou numa zona desconhecida, longe do restaurante, confundir, em Évora, as Portas de Moura com a Praça do Giraldo, entre tantas outras. No entanto, no estrangeiro, as consequências podem ser mais complexas. No meu caso, quando vivi no Uruguai, era um gosto andar perdida pelas ruas de Montevideu, pois cada um dos transeuntes parecia ter esculpido no cérebro as ruas da cidade. Para além da simpatia, da conversa sempre interessante – foi o único lugar do mundo onde encontrei um taxista a declamar de cor poemas de Baudelaire – as indicações eram precisas, fáceis de entender, de seguir, mesmo para quem precise de pensar um bocadinho onde fica a esquerda e a direita (sim, à desorientação somam-se alguns problemas de lateralidade, pois afinal, como sabemos, um mal nunca vem só). Do mesmo modo, outros lugares houve onde a minha cara de ponto de interrogação atraiu apoio imediato de alguém que passava, como sucedeu nos Estados Unidos, em Taiwan, na Tailândia. Em contrapartida, em Macau e na China foi verdadeiramente árduo ser desorientada. Para já, somos invisíveis, ninguém olha para nós, não se olha para os outros. Mesmo que se tenha uma faca espetada nas costas, ou uma sirene de luz implantada na cabeça, a guinchar, a girar, a indiferença é total. Isto faz com que, ao sair-se daquelas terras, se estranhe muito o facto de alguém olhar para nós, a ponto de ficarmos a pensar que temos algum problema, se teremos vestido a roupa do avesso ou sabe-se lá que mais. Mas, regressando ao assunto anterior, a verdade é que qualquer pedido de informação em Macau desencadeava um gesto algo agressivo de recusa ou um encolher de ombros, na maioria das vezes. Contudo, houve uma situação diferente, de curiosa gentileza. Isso sucedeu no centro de Macau, na parte antiga, mais genuína, onde vivia uma amiga minha que, de vez em quando, me convidava para jantar em casa dela, situada na Rua das Verdades. Acontece que antes da Rua das Verdades, havia o Beco e a Travessa das Verdades (uma verdadeira overdose de verdade), cujos prédios eram iguaizinhos. Na primeira vez, enganei-me e fui para o prédio com o número correspondente na Travessa. O porteiro, já velhote, muito simpático, alegre com o meu cantonês macarrónico, abriu-me a porta. Mais tarde, na próxima vez em que voltei, ao ver-me ao longe, abriu a porta e lá fui eu a subir as escadas até ao terceiro andar errado, para depois as voltar a descer. O curioso é que o porteiro se habituou à kwailo, à estrangeira esquisita que lá ia subir e descer escadas e eu, inexplicavelmente, movida pela simpatia dele, já o achava tão familiar que me esquecia de que pertencia ao prédio errado. Isto diz algo sobre a repetição mecânicas, impensada dos nossos gestos, a insistência em velhos paradigmas enraizados em nós, que custam a mudar, uma espécie de pele já gasta que recusamos arrancar.

Com efeito, por mais que me esforce sou incapaz de saber para que lado fica o Norte. Sei teoricamente todos os pontos cardeais, que o sol nasce a Este e se põe a Oeste, mas colocar isso em prática é uma total impossibilidade. Contudo, reconheço, entre todas as desventuras daí provenientes, uma grande vantagem: conhecer muito mais mundo do que as pessoas normais, orientadas, a seguirem sempre os seus trajectos certos, seguros. Assim, um percurso que demora 15 minutos a fazer, prolonga-se para 40, mas povoado de uma riqueza vivencial única: tropeça-se em bairros, ruas inimagináveis, acampamentos, becos, todo um mundo invisível aos olhos dos seres humanos equipados com a capacidade da orientação. Para além disso, há sempre uma atitude de espanto iniciático, pois mesmo quando se faz o mesmo caminho várias vezes, acontece o milagre de árvores ou ruas se afastarem, curvas mudarem de sentido, uma multidão de seres inanimados, estáticos, investidos de vida, só mesmo para nos confundirem. Ah, e a tendência para pontos de referências móveis? O pastor alemão deitado, que, certo dia resolve dormir noutro sítio? Ou o senhor de amarelo que desaparece? Ainda me lembro de, por volta dos sete anos, admirar o facto de os meus pais irem a Faro (a maior cidade que eu conhecia na altura), estacionarem o carro e depois serem capazes de o encontrar. Hoje, aos cinquenta, ainda sinto a mesma surpresa.

Em suma, há um universo de experiências às quais apenas os desorientados acedem: a tranquilidade de avançar sem se saber para onde, dar quatro voltas a uma rotunda até almariar, para depois, no embalo do enjoo, decidir o rumo. E, sobretudo, acredito na existência de uma neblina poética a ocultar, a desvendar os seus percursos num jogo de chiaroscuro, impregnado pelo olhar iniciático do eterno espanto, um pouco na senda de Alberto Caeiro. Sim, perdemo-nos, logo existimos, encontrando-nos nos desencontros, a calcorrearmos os mais insólitos, pedregosos, surpreendentes caminhos da vida.

Dora Nunes Gago é professora