Ao longo do tempo, sobretudo quando comecei a viajar mais, principiei a deparar-me com um curioso fenómeno acontecido naqueles locais a que Marc Augé denominou por «não lugares», espaços que não podem definir-se como identitários, nem relacionais, nem históricos, aqueles onde as pessoas não permanecem, nos quais pouco ou nada se relacionam. Cabem nesta categoria, por exemplo, estações de caminhos de ferro, de autocarros, aeroportos.... Esses espaços onde as pessoas apenas se cruzam, em constantes passagens. E precisamente, nesses locais, é frequente quando estou sentada numa sala de espera, ser abordada por alguém desconhecido que se aproxima, pedindo para vigiar a mala porque precisa de fazer algo urgente. Embora o pedido se tenha repetido, ao longo dos anos, dos cantos do mundo, a minha surpresa renova-se sempre, aliada à instintiva pergunta que faço a mim própria: “mas se não me conhece de lado nenhum, como sabe que eu não lhe vou roubar a bagagem? Como pode ter a certeza de que não irei simplesmente dizer que sim para depois abandonar a promessa feita e ir à minha vida?”. Eu, por exemplo, nunca confiei a minha mala à supervisão de nenhum estranho. Serei anormalmente desconfiada? Por outro lado, há ainda a inquietação, a preocupação quando o proprietário ou proprietária da bagagem desaparece por largo tempo. Eu que também precisava de sair dali pelas mais diversas razões, sou impelida a ficar, completamente incapaz de abandonar aquela mala desconhecida, como uma pastora-alemã rigorosamente treinada. No fim, acabo frequentemente a correr, quase a voar, para a porta de embarque, para a fila, para a linha, de modo a não perder o avião ou o comboio consoante o caso.

Na Ásia, a primeira vez que tal me sucedeu foi no aeroporto de Singapura, a pedido de um monge budista. Envolto na sua túnica laranja, dirigiu-se a mim, num inglês perfeito, pedindo para que lhe vigiar a mala. Respondi-lhe afirmativamente, admirada como sempre pela confiança, embora saibamos que um monge é forçosamente um homem de fé. Não se demorou e quando regressou quis saber a minha nacionalidade. Quando referi ser portuguesa, exclamou de imediato: “Oh, Portugal, Cristiano Ronaldo! He’s my idol!”. Sinceramente, a palavra «idol», pronunciada assim por um monge budista ressoou de forma estranha dentro de mim. E, de súbito, vi uma imagem gigantesca e dourada de Cristiano Ronaldo a ocupar o centro do templo (um sucedâneo dos Big Budas visitados em várias partes). Todavia, isto de o futebol como religião ou como substituto da mesma, já foi estudado, comentado, como se sabe. Aliás, em 2014, em vésperas do campeonato do mundo, o teólogo brasileiro Leonardo Boff mencionou no seu blogue, o futebol como “religião laica universal”, tecendo depois ousadas comparações entre um e o outro domínio. Não obstante, neste ponto, regresso novamente ao antropólogo francês Marc Augé que, em 1982, num artigo intitulado «Football. De l'histoire sociale à l'anthropologie religieuse», publicado em Le Débat, equaciona já a posição do futebol como uma espécie de fenómeno religioso. Nesse estudo, preconiza que o futebol constitui um facto social completo por dizer respeito a todos os elementos da sociedade, deixando-se abordar sob diferentes pontos de vista. Além disso, cita um trabalho de Robert W. Coles no qual se demonstra que a análise de Durkheim das atitudes e práticas religiosas é aplicável à realidade social do futebol. Não obstante, sendo estas perspectivas do mundo ocidental, não se pode negar que o acto de idolatria do monge budista por Ronaldo assuma o seu toque de originalidade. 

E para rematar, termino com a minha última missão como «pastora-alemã» num aeroporto asiático. Aconteceu em Macau, após os anos despidos de viagens, devido à pandemia, quando no aeroporto aguardava o voo para Singapura, única porta de ligação ao ocidente. De repente, oiço uma voz a perguntar: “Desculpe, não se importa de me olhar pela mala? Preciso mesmo de ir à casa de banho antes de embarcar”. Respondo sem hesitar que sim. Senti-me envolvida por uma aconchegante capa de alívio, afagada pela mão da normalidade, que naquele momento, apesar de todas as incertezas, me tranquilizou.

Dora Nunes Gago é professora