«Todas as cartas de amor são ridiculas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridiculas. Também escrevi em meu tempo cartas de amor, como as outras, ridiculas. As cartas de amor, se ha amor, têm de ser ridiculas. Mas, afinal, só as creaturas que nunca escreveram cartas de amor é que são ridiculas. Quem me dera no tempo em que escrevia sem dar por isso cartas de amor ridiculas. A verdade é que hoje as minhas memórias d’essas cartas de amor é que são ridículas. (Todas as palavras esdruxulas, como os sentimentos esdruxulos, são naturalmente ridiculas)».

Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa, 21/10/1935


Amo-te e quero escrever-te uma carta de amor. Mas porque a carta e o amor te pertencem e a ti se destinam, quero apenas expressar o que te apraz ouvir, o que tem a ver contigo: o sentimento de ti. Aprofundar a relação entre a pessoa que ama e a pessoa amada, em vez de aperfeiçoar uma qualquer correspondência banal entre nós. Deste modo, entenderias o meu mundo preenchido com a totalidade da tua imagem.

Tento escrever esta carta de amor e implicitamente desejo uma resposta voluntária, vinda da tua pessoa. Mas persiste uma pequena e corrosiva agonia, como se a casa do amor fosse uma zona de angústia, as tuas angústias. A resposta talvez nunca chegue e assim, a imagem da pessoa amada que és altera-se. Há um desfazamento na realidade desse amor que me preenche. O amor, antes irreal e idealista, torna-se agora «a-real», uma fuga à percepção viva do que julgo ser a nossa realidade, através de um imaginário sentimental. Tu e as tuas pessoas. O amor, antes fantasiado - a fuga à realidade impõe-se através da fantasia - torna-se agora estéril e imutável, pela impossibilidade de existência no meu mundo que penso ser real. O meu amor, preso nas franjas da ausência da tua resposta. A essência do que sinto não existe, apenas insiste num gesto de telepatia espiritual – a realidade inatingível.


Hoje, ainda não sabes que te amo. Hoje, é mais um dia destruído pela tua ignorância. Amo-te e desisto de escrever esta ridícula carta de amor. Amanhã (ainda te amarei?), fantasiarei sobre a minha irrealidade amorosa, com a mesma caneta sobre o papel rasurado, um acto contínuo de insatisfação, bem no centro da tua ausência «a-real». Mudarei talvez uma palavra que, entretanto, se perdeu naquela hora diária em que os pássaros gritaram e esvoaçaram à procura de um lugar para pousar a sua frágil loucura. A minha loucura.

Sei que nem os meus pensamentos sobre ti são uma realidade verdadeira. Porque tu não és real. Tu e os outros. As pessoas que tu és. Hoje, quem sois? O meu amor por ti e pelos outros não é verdadeiro. Real, será apenas o esquecimento. O pensamento é o regresso repetido do esquecimento. Acredito nisto porque todos os dias, à mesma hora, os pássaros esvoaçam e gritam, desesperadamente, à procura de qualquer coisa que parece não existir. O espaço-tempo dessa penumbra que continuamente esqueço é o lugar onde vivemos quando amamos, e ao qual repetidamente regressamos. O espaço-tempo do esquecimento é o ninho do pensamento, é a cadeira onde descanso depois de escrever cartas de amor ridículas.

Eu, aqui sentada nesta cadeira incómoda depois de quase escrever uma carta de amor. Fecho os olhos, guardo este instante sublime no meu colo e percebo que acabei de nascer. Esqueci o que era e o que escrevi antes. Não tenho passado, nasci mesmo agora, enquanto te peço que me leias. Os pássaros pousaram nos ramos da minha árvore e calaram-se. Agora, podes ouvir-me? Queres ler-me, conhecer-me melhor, descobrir o significado da minha narrativa inacabada? Vais perceber que há um instante em que o autor morre e o leitor nasce, precisamente ao mesmo tempo. Eu dou-me e tu acolhes-me no teu colo interpretativo, essa espécie de abraço. Descodificas as minhas palavras, mas eu já não estou aqui, já não sou a mesma natureza sentimental. Voltarei quanto te escrever outra carta de amor, outra complexidade ridícula. É um sacrifício quase divino, na ausência do autor-deus que valide as minhas considerações transitórias. Inútil, indecente filosofia.

Ainda te amo, mas não sei o que isso significa. Dou-te a minha vida, a amplitude do meu último instante, mas não consigo perceber a resposta do tempo e da razão na imagem do que sinto. Tu a ler-me: lês o amor e decides escrever uma resposta. Amas-me e queres escrever-me uma ridícula carta de amor.

Adília César é escritora

Crónica publicada em:
REVISTA ALGARVE INFORMATIVO #366 by Daniel Pina - Issuu

*Ofélia Maria Queirós Soares (1900-1991), a única namorada conhecida de Fernando Pessoa