No começo de novembro, logo na semana que o abriu, a minha mana Gabriela Soares, a minha querida Ana Marta Farrajota e eu fomos, muito contentes, dizer versos à Biblioteca Municipal de Loulé. Vou sempre muito alegre àquela biblioteca: foi por ela que comecei a ler fora de casa (era ainda noutro lugar da agora cidade), foi também ali que me fui formando; hoje é dirigida pela Rita Moreira, alguém cujo percurso pude acompanhar (por ser da criação da Gabriela e do nosso irmão João Gabriel). Fomos, pois, muito contentes – e alegrou-nos ter tido na assistência olhos e ouvidos muito doces e amigos, gerações diferentes, o mesmo brilho. Na escolha dos poemas, consegui fazer o que tantas vezes tenho de adiar: abrir e gozar um livro que comprara algumas semanas antes e que ainda não encontrara tempo para perscrutar. Saiu em agosto deste ano, Verão pleno, mas chama-se O Outono de Oitocentos (edição da Flop). Nele, Margarida Vale de Gato coligiu e traduziu para cima de cento e vinte poemas, todos do século XIX (mas de todo o século!), sobretudo de autores anglófonos, mas igualmente de escritores alemães, franceses, belgas, ou holandeses, que teceram as mais bonitas linhas em torno da ideia do Outono. Desde logo, sobre o Outono literal, entendido como a estação do ano que, na maior parte dos meses derradeiros do ano (no hemisfério Norte) faz transitar a abertura do calor para o friozinho invernal; e, para além disso, lido metaforicamente, ou figuradamente, como tempo de passagem para um capítulo mais inóspito da vida, momento de término, ponto de chegada.



Qualquer dos versos dos poetas Românticos sobressai na oscilação entre estas duas leituras, a do sentido figurativo e a do sentido literal. Na sessão da biblioteca de Loulé, misturámos uns quantos poemas escolhidos da antologia com outros tantos de autores portugueses (Saramago, que abriu a leitura; o óbvio Pessoa; mas igualmente Torga e Eugénio de Andrada). O gozo era o da palavra, sincronizada com o tempo que vivíamos (que vivemos). A tentativa foi a de fazer com a ideia outonal, decadente, da estação, não predominasse – e sobreviesse antes a ligeireza da aceitação da passagem, da sua alegria. As versões de Margarida Vale de Gato (ela própria poeta, ela muito e muito antiga conhecedora de versos de todos os tempos, de todas as línguas), dos poemas não portugueses que elegemos, ajudaram a criar o ambiente. Penso em dois deles, os que mais me cativaram: um divertido (e mordaz, e até cruel) «O ouriço cacheiro», do «poeta camponês» John Clare (1793-1864), que suscitou em mim uma vontade feroz de o ler melhor; e «Ao Outono», um louvor do romântico inglês John Keats (1795-1821) à estação tão menos cantada do que a da Primavera (“Que é feito da cantante Primavera? Ora, / Deixa, tu também tens as tuas melodias”). No primeiro, o simpático animalzinho dos contos infantis protagoniza cenas gore em que tanto é vítima como carrasco e nada tem a ver com o focinhito doce e atarefado de Mrs. Tiggy-Winkle, que Beatrix Potter viria a popularizar no século seguinte. No segundo destes dois poemas, depois de duas estrofes em que sobretudo se cantam plantas e frutos (a recolha da estação, afinal), além de nuvens, brisas e névoa, a última é dominada por vários animais: melgas, ovelhas, grilos, pintarroxos e andorinhas que se juntam em bandos («gathering swallows»), «amontoadas» no céu, como as retratou a tradutora, que dá a quem lê a alegria de um verbo desusado para o cantar dos pássaros: «trinfar» – eis o último verso: “E trinfam andorinhas no céu amontoadas”. Por uma sorte imensa, alojo temporariamente um volumezinho (querido empréstimo da Tânia Veríssimo Figueiredo) precioso, o Pequeno Dicionário Luso-Brasileiro de Vozes de Animais (Onomatopeias e Definições) – 1º Suplemento. Lá está, na página 16, o «trinfo» que declina em língua portuguesa o tão agastado «Twitter» da andorinha inglesa.

Nota: A Biblioteca Municipal de Loulé apresenta, nas primeiras sextas-feiras de cada mês, pelas 18h, na sua sede em Loulé, a iniciativa Poesia ao Fim do Dia. A cada mês, a Biblioteca recebe um convidado diferente, que escolhe poemas e os apresenta ao público, com entrada livre.

Ana Isabel Soares é professora

Foto: Vasco Célio