O discurso é fluente, embora por vezes hesitante, a espelhar o nervosismo, o entusiasmo típico dos jovens que ainda creem no meio académico como antes, numa fase anterior das vidas, acreditavam no Pai Natal. Está longe ainda a fase da descrença, do “tanto faz”, do “que faço eu aqui?” A trabalhar com etimologia, aborda as tradições, as crenças centradas no Papa-figos – pássaro que habitou o meu imaginário de infância, em terras de figueiras. Recordo que de Maio a Agosto, quando os dias escorriam luminosos, lentos, pelas páginas do calendário preso na porta do frigorífico, era sobretudo uma voz, um canto persistente, aflautado, a vangloriar-se “figoscomi, figoscomi”. Ao ouvi-lo, a minha curiosidade aumentava, queria saber onde estava, vê-lo, tocar-lhe. E acredito tê-lo visto uma vez, num relampejar de asas de ouro, marchetadas de negro – a habilidade para se esconder nas ramagens confere-lhe uma espécie de manto de invisibilidade.

Mais tarde, em descontraída conversa no jantar do Congresso, refiro-lhe o vínculo do papa-figos ao meu imaginário de infância. Conta-me como tem percorrido a Europa acompanhado por uma gaiola com dois canários, as aventuras e desventuras para eles serem aceites nas residências universitárias onde tem vivido, em diversos países. Dos canários e papa-figos passamos para outros animais em geral. Sobre as crenças que envolvem cobras e osgas, injustamente acusadas de roubarem leite aos recém-nascidos, refere que é algo que se prolonga por toda a Península Ibérica, estendendo-se até à Roménia. Dessas crenças passa às breves crueldades de infância, ao tempo em que incendiava formigueiros com um vidro. Esse vidro bastava para converter as formigas em Ícaros terrestres adiados, sem asas, a sofrerem o paradoxo de serem tocadas pelos dedos fulminadores do sol. Fala do remorso, de como queria voltar atrás e salvar cada uma dessas pobres formigas. Ao ouvi-lo, evoco também o meu remorso que não ouso partilhar: o pequeno morcego que tentei salvar, que encontrei caído em cima do poial da casa da minha avó, mas que não sabia como alimentar. Tinha cinco anos e não imaginava como sustentar o bicho. Perguntei a várias pessoas o que comeria ele. Falaram-me de insectos, moscas, por exemplo. Mas como conseguir apanhá-las e dar ao meu morceguito de estimação? Pensei seriamente nisso. Apanhar insectos era muito difícil mesmo… De repente, descobri que na arrecadação havia moscas caídas, vítimas de insecticida, mais especificamente Bomba H, era assim que se chamava. Com a minha vassoura de brincar e uma pá, recolhi cada um daqueles cadáveres que pressenti serem alimento deliciosamente nutritivo para o meu morcego. Ele comeu, satisfeito. Depois, na manhã seguinte, o horror! Estava morto, hirto, gelado… Como era possível, depois de ter comido tão bem? De o ter sustentado com tanto empenho? Só muito depois descobri a terrível verdade e veio a sensação de culpa pelo meu crime acidental… Mas nada disto partilhei com ele, receosa de ser rotulada como assassina de morcegos, por alguém que sofria ainda pelas formigas mortas.

Na verdade, ele confessa ser incapaz de matar uma mosca ou uma formiga, procurando ainda formas de expiar a culpa do passado. Um desses modos de expiação é regressar à Roménia onde viveu e onde vive a namorada, antes do início do Inverno, para... salvar sapos! Apercebeu-se de que inúmeros sapos eram atropelados pelos carros. Por isso, leva sacos onde os coloca, para depositar depois num lago. Imagino-o na azáfama de recolher os bichos na bainha das estradas, a encher sacos atrás de sacos. Um polícia desconfiado pergunta sobre o conteúdo de tanto recipiente. Incrédulo, verifica aquele vibrante coaxar de criaturas ignorantes da bênção salvadora. Já noite escura, em terra fria e enlameada, depara-se no lago com outros também a buscarem distinta salvação: um grupo de adolescentes, entoando uma espécie de mantra, rezam tal como exigido na religião professada. O lago é convertido em oásis salvífico não apenas para os sapos, mas também para aqueles jovens a buscarem talvez uma vida além da eternidade. O lago, espaço de salvação igualmente para o salvador de sapos, a enterrar nas suas profundezas, nos corpos húmidos, vibrantes, o remorso escondido no alçapão da infância. “Sabes, quando era muito pequeno chacinava formigas. Usava um vidro, ou uma lupa que virava para o sol, incendiava-lhes os carris”, repete.

Afinal, até um doce e promissor académico, salvador de sapos a estudar os mistérios do papa-figos, já foi um dia um incendiário. E assim giramos no carrossel da vida, nos caminhos que escolhemos ou para os quais somos empurrados, a flutuar nas marés do destino (ou a rebelarmo-nos contra ele), nadando em direcção oposta à correnteza – como é típico dos Don Quixotes, dos outsiders, dos que permanecem à margem, olhados de soslaio, contemplados com um erguer de sobrolho desconfiado, surpreendido da vida, ou simplesmente camuflados entre a folhagem de uma figueira. Entre os incêndios da infância, os envenenamentos acidentais, pisam-se as areias movediças do remorso, tentando resgatar o tempo perdido dentro de um saco de sapos.

Dora Nunes Gago é professora