Entre fevereiro de 1903 e dezembro de 1908, o poeta alemão Rainer Maria Rilke escreveu a Franz Xaver Kappus uma série de cartas a comentar as «tentativas poéticas» do jovem militar de dezanove anos. Leitor de Rilke, Kappus soube que o poeta fora, como ele, pupilo na mesma academia e ganhou ânimo para lhe enviar os seus versos e pedir «o seu juízo». As cartas, que hoje são conhecidas e traduzidas por todo o mundo como
Cartas a um jovem poeta, são tidas como uma espécie de «compêndio» (José Miranda Justo, um dos seus tradutores para língua portuguesa, usa este termo) – mas não se usa chamar-lhes «manual». Talvez a distância entre um «compêndio» e um «manual» venha da diferença entre um conjunto de princípios mais ou menos teóricos, mais ou menos abstratos, acerca de determinada tarefa ou função (que seria o primeiro) e uma lista de procedimentos concretos, de indicações precisas, relacionadas com alguma materialidade que a ideia de trabalho manual traz consigo.

Tenho um problema em mãos: um dos meus sobrinhos pede ao pai e o meu mano pede-me a mim que ensine o pequeno: “Pai, quero escrever versos, daqueles com rimas”. Não sendo eu Rilke, a circunstância de o meu sobrinho não ter ainda escrito os tais versos que pretende aprender a escrever torna a apelativa ideia de manual numa dificuldade: em vez de me pôr a martelar, limar, serrar e colar palavras já feitas madeira ou barro, é preciso trabalhar no vazio, na prospeção, de olhos vendados, só com o futuro, com a ideia da palavra num torno imaginário – e, por isso, tão elusivo, fugidio. Que conselho se dá a alguém que quer escrever poemas, “desses que rimam”, pergunto-me? E que conselho se dá a uma criança que acredita que “escrever versos que rimam” é uma ação desejada, cujas dinâmicas criativas são do domínio dos adultos, que existem para ensinar tudo o que se quiser aprender? Escreveu outro poeta, antes de Rilke, que “a Criança é Pai do Homem”, e eu, romântica confessa, creio mais nessa ordem das coisas. Seria fugir ao problema responder ao meu sobrinho “És tu que tens de nos ensinar?”. O próprio Rilke sugere ao “jovem poeta” que recorra às “imagens dos seus sonhos” e aos “objectos [sic] da sua recordação”, e que a infância é “essa preciosa riqueza régia, essa câmara de tesouro das recordações” – é no lugar da criança que se pode visitar a matéria da poesia. Sem dúvida, mas para navegar nesse mundo é o compêndio que ajuda, e o meu sobrinho precisa do manual.

Quis o fortuito do quotidiano que me pusesse a pensar nisto no dia em que se completam 100 anos do nascimento de um poeta celebrado, Eugénio de Andrade; e em que as televisões e as rádios o dizem, o dão a ouvir, gesto típico de comemoração pontual que os restantes 364 dias do ano diluem, dissolvem. Estava entregue às mais prosaicas atividades matinais, quando a telefonia jorra “Toda a manhã procurei uma sílaba”, verso do poema «A Sílaba», do poeta nascido a 19 de janeiro de 1923. Escreveu-o já adulto, com obra publicada, (sobre)vivente das angustiantes buscas poéticas (“... faz-me falta. Só eu sei / a falta que me faz”, diz no poema), e fico a pensar no meu pequeno de oito anos, poeta por experimentar. Se lhe disser, como Eugénio, que a sílaba encontrada é uma “salvação”, que “Só ela [o] podia defender do frio de janeiro” (ainda «A Sílaba»), o meu sobrinho olhará para mim, interrogativo, e passará além da citação, para me trazer de volta ao busílis: “Sim, mas diz-me é como se encontra”. Vou oferecer-lhe um dicionário de rimas, ou, se o descobrir, o Dicionário Inverso do Português. E, pelo sim, pelo não, um escopo e um martelinho.

Ana Isabel Soares é professora

Foto: Vasco Célio

NOTAS: O poema de William Wordsworth (1770-1850), «My Heart Leaps Up», pode ser lido aqui no original. As Cartas a Um Jovem Poeta, de Rainer Maria Rilke, foram editadas, por exemplo, pela Antígona, na tradução de José Miranda Justo, numa bela edição bilingue de 2007.