Tendo em conta o acréscimo das más notícias recebidas, começo, cada vez mais, a ter receio de atender o telemóvel quando algum amigo me telefona pela manhãzinha. Foi o caso, neste sábado, quando a minha amiga Elsa Rocha me telefonou e eu não atendi por ter o telemóvel sem o toque ativado. Fiquei apreensivo e relutante em lhe responder ao telefonema, pois tive um mau presságio. Infelizmente, estava certo! Ao telefonar-me pela segunda vez, deu-me uma notícia que nos colocou aos dois num profundo silêncio, seguido de um partilhado e copioso choro: o «nosso» João Rosa tinha falecido nessa madrugada, vítima de um trágico acidente de viação.

Confesso, tendo eu já perdido o contato físico com todos os meus ascendentes, não me encontro ainda emocionalmente preparado para perder a minha outra família, aquela que a vida proporcionou e concedeu: os Amigos. Contando os meus amigos pelos dedos das mãos, sei agora que me amputaram um dedo. As dores são imensas e indescritíveis e esse dedo vai-me fazer muita falta. É com uma mistura de sentimentos que quis aqui prestar uma homenagem a um anjo que antes de o ser já o era. Estou a escrever-vos estas sinceras e sentidas palavras na véspera do dia em que o corpo morto do meu «bom gigante» se irá transformar em cinza.

Recentemente, sentado à minha frente na nossa mesa de jantar, tinha desabafado que sentia que já não estaria por cá muito tempo, lamentando-se de ter a sua mãe dependente e a seu cargo. Respondendo-me ao comentário que lhe fiz, dizendo-lhe para não proferir parvoíces, riu-se e disse-me: “Quando me for, organizem uma festa e festejem a vida que vivi!”. Assim será querido João. Será feita a tua vontade. Retomarei o meu antigo cargo de delegado de turma e juntarei toda a malta que em vida tocaste com a tua generosidade, sabedoria, sensatez, altruísmo, bondade e abnegação.

Não fomos só nós, amigos e família, que o perdemos, foi o Serviço Nacional de Saúde que ficou mais pobre ao perder o Diretor do Serviço de Medicina Intensiva Pediátrica e Neonatologia do Centro Hospitalar Universitário do Algarve e o pediatra de tantas crianças algarvias. Não foi preciso morrer para reconhecerem o seu profissionalismo, valor, competência e dedicação à causa da saúde pública. Todos os profissionais de saúde com quem trabalhou, bem como os seus jovens pacientes, sempre lhe teceram os maiores elogios, reconhecendo a sua grandiosidade humana e profissional. Tive oportunidade de o registar quando, ao visitar alguns locais onde trabalhou, observei as reações e os comentários de todos os que consigo laboravam. Sempre me fez sentir uma grande admiração e orgulho!

Filho, irmão, pai, marido, avô e amigo dedicado, cuidadoso e afetuoso, João Rosa plantou em todos os que tiveram o privilégio de o conhecer as sementes que não o irão deixar morrer nos seus corações e nas suas mentes. Será impossível esquecer alguém com a envergadura moral, humana e social deste grande ser humano. Todos os que com ele privaram na Igreja, no Conservatório, nos Escuteiros, na Escola, na Universidade, no Farense e no Hospital recordam alguém que os ajudou a ser melhores pessoas. É o meu caso!

Escrevo enquanto escuto um cd do Pat Metheny, músico que tanto gostava, e recordo as nossas corridas de bicicleta à frente da sua casa de juventude no largo de S. Francisco em Faro; as suas festas de aniversário em que eu tocava sempre o mesmo fado-canção no seu velho piano, a pedido da «vizinha de baixo»; as nossas aulas conjuntas na catequese; a participação como aluno e professor no Conservatório de Música do Algarve; a frequência nas mesmas turmas da área de Saúde na Escola Secundária João de Deus em Faro; os bailes da adolescência; enfim... desde os seis anos a cimentarmos a nossa amizade.

Tendo assistido comigo ao nascimento dos meus dois filhos, foi ele que sugeriu ser o seu pediatra, dizendo-me em tom de brincadeira que ficaria aborrecido se eu escolhesse outro. Recordo que ambos não se importavam de ficar doentes, pois sabiam que iriam estar com o seu amigo João, nunca o chamando Dr. João Rosa. Tinha com os seus jovens pacientes uma relação única, dando segurança e tranquilidade aos progenitores e boa-disposição e felicidade aos filhos. Tinha o hábito de perguntar aos jovens pacientes com mais de dez anos em que escola andavam; se fosse a minha, perguntava quem era o professor de Educação Musical; se fosse eu, já sabia que na semana seguinte teria o envio de um abraço seu. Ontem, perguntei às turmas a que lecionei se o conheciam e qual não foi o meu espanto quando me apercebi que muitos alunos tinham sido ou eram seus pacientes e sabiam o que lhe tinha acontecido. Com a voz embargada e não tendo conseguido suster as lágrimas, ao presenciá-lo os meus alunos surdos do 9.º ano vieram abraçar-me e reconfortar-me.

Em plena pandemia, e como já tinha sido contagiado pela Covid-19, perguntava-nos, família, se podia visitar-nos para desanuviar. Para além dos membros da família, era a nossa única visita do «mundo exterior»… e que bem que nos fazia tê-lo cá em casa. Desde sempre, era o único amigo que aparecia na nossa habitação sem precisar de ser convidado. Simplesmente, aparecia. No último ano, telefonava-me e, naturalmente, dizia-me: “Vou aí jantar ou tomar um café convosco!”. Por vezes, entrava amargurado e/ou triste com motivos pessoais ou profissionais e, frequentemente, já depois da meia-noite saía mais satisfeito do que tinha entrado. Era mais uma luz que brilhava em casa quando estava connosco.

Esperávamo-lo esta semana para colocar a «escrita» em dia. Tristemente, já não vai ser possível, mas fica-me a certeza de que tudo o que quis e pude ter vivido com este amigo vivi-o, e isso deixa-me uma enorme lição de vida: “A amizade não se apregoa, pratica-se!”. Aguarda-me João Rosa, que o jantar apenas foi adiado. Aí aparecerei, eu e muitos mais, e a festa vai ser bonita. Está prometido, teu «pc».

Paulo Cunha é professor