Promete-me uma surpresa, um museu único e inesperado. Expectante, aceito com gratidão o convite.
Saímos de Cáceres na manhã de sábado azul. O destino é o Museu Vostell na Malpartida. Pelo caminho, um aglomerado de gente em peregrinação num descampado. O local onde se fizeram filmagens de uma popular série intitulada «A Guerra dos Tronos». As novas peregrinações e os novíssimos locais de culto da nossa sociedade de consumo, pautada pelo superficial, pelo fútil, pelo fast (a aplicar aos mais variados sectores, da alimentação à Ciência, passando pela Literatura e pelas relações humanas) – a tal sociedade a que o sociólogo polaco Zygmunt Baumann chama de líquida, mas que nos tempos que correm, mais parece ter passado para o estado gasoso. E é também no meio do nada que fica o Museu Wolf Wostell (1932-1998), inaugurado em 1976, fundado pelo pintor e escultor alemão com o mesmo nome, membro e fundador da «Fluxus colectivo», corrente que critica a sociedade de consumo, mas também a letargia, o holocausto. Nada de mais actual no contexto em que vivemos, no momento em que ainda sob o efeito de uma pandemia assistimos a uma sangrenta guerra na Europa de dimensões e consequências incalculáveis.
Num primeiro olhar irreflectido, surge-me um amontoado de tralha: motas sobrepostas como se estivessem num catálogo, televisões com pedras em cima, ecrãs semidestruídos, cadillacs desmembrados ou atravessados por aviões de guerra, um ofuscante piano de luz, vídeos diversos. Contudo, depois, as partes, os objectos, juntam-se num todo, como se a minha mente encaixasse devidamente as peças daquele puzzle a evocar o estranho mundo da técnica, do fragmento, do absurdo no qual imergimos cada vez mais sem sabermos se conseguiremos vir à tona, ao menos para respirar. E, de súbito umas escadas com a indicação para um último cais. Páro, indecisa, a pensar que cenário pré-apocalíptico poderá surgir. A expectativa sugando o fôlego, enquanto subo lentamente cada degrau, como se me aproximasse de uma espécie de Juízo Final.
De repente, uma breve nesga de paraíso: estou rodeada por um lago, bordado, ao longe por pedras, barruecos a emergir do chão. Um grito de beleza, de autenticidade, a rasgar as entranhas do vazio, do absurdo. Esse grito prolongado mais adiante, num outro edifício que serviu de lavadouro para as lãs, nas maquetes e circuitos da transumância a documentar os mais de mil quilómetros calcorreados pelos rebanhos e seus pastores na demanda dos melhores pastos, em busca da sobrevivência. E não será apenas disso que precisamos? Após séculos, décadas, a construir impérios de areia, a invadir territórios alheios, a edificar técnicas, formas de vida frenéticas, incongruentes, despreza-se o melhor «pasto» para nutrir a alma e devolver cada um à sua própria essência.
Dora Gago é professora
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