Em vários países europeus os trilhos e caminhos rurais, com anos de utilização popular ou simplesmente com indicação em mapas, são de serventia pública e não podem ser bloqueados, obstruídos ou encerrados. No Reino Unido, por exemplo, a norma legal conhecida como «Rights of Way», garante ao cidadão o poder de caminhar por todas essas vias, mesmo que sejam em propriedades privadas. Há, inclusive, organizações da sociedade civil que intervêm no sentido de solucionar litígios ou violações desse direito que rapidamente se resolvem em favor do acesso público.
Na Suécia, o direito de acesso público ou «Allemansrätten» («The all mans right») como por lá designam, dá total liberdade aos cidadãos, residentes e visitantes, de explorarem a natureza, caminhando, pedalando ou até acampando, desde que com responsabilidades («Don’t disturb – Don’t destroy») e com pequenas excepções (ex. no interior de jardins provados ou em terrenos cultivados). O livre usufruto da natureza é um princípio levado a sério por aqui, ao ponto de estar consagrado em lei especifica.
Aqui ao lado, em Espanha, temos o exemplo das «Vias Pecuárias», com várias tipologias, nomeadamente «cañadas», «veredas» ou «coladas». São reconhecidas como elementos patrimoniais seculares – utilizadas historicamente pelas transumâncias do gado – como bens de domínio público e, como tal, não podem ser ocupados, vendidos ou destruídos.
E por cá? Como funciona o regime de utilização de caminhos? Que legislação existe e os protege? Bem, começo por dizer que é a confusão total. Basta procurar na web por caminhos públicos e ver como surge a informação. Enquanto nos países que referi qualquer pesquisa dá-nos informação precisa e concreta (na Suécia, curiosamente, é o próprio instituto de turismo que nos explica isso), por cá é o caos. Informação jurídica complexa, massuda, nada simplificada ou acessível. Uma verdadeira ausência de informação.
Mas sabemos que esses caminhos existem. Contudo, como estão protegidos, identificados ou sequer referenciados é uma incógnita. E, como tal, o que assistimos no dia a dia é a uma total bandalheira na protecção dos mesmos e ao direito de os utilizar.
Veja-se o que está a acontecer actualmente na Quinta do Ludo, em pleno Parque Natural da Ria Formosa, no Concelho de Loulé. Os caminhos que lá existem, utilizados há décadas pelas pessoas da região, com acesso ao chamado «domínio público hídrico», designadamente à ria, cursos de água ou praias – e que foram inclusivamente intervencionados com fundos públicos ao abrigo do programa Polis – estão hoje vedados e com vigilância privada. Caminhos esses que foram integrados em roteiros turísticos, internacionalmente disseminados em diversas publicações promocionais do destino Algarve, agora interrompidos por vontade do proprietário, ilegalmente, sem motivos claros e qualquer respeito pelos antecedentes e pela utilização pública do local. As entidades públicas já foram chamadas a intervir. Veremos como e quando se resolve a situação.
Outro exemplo igualmente assinalável ocorre na Via Algarviana, numa parte do seu itinerário em Monchique, perto da Fornalha. Esta grande rota pedestre, financiada com fundos públicos, instalada desde 2009, com as devidas autorizações dos municípios por onde passa, viu-se privada de um pequeno troço, há cerca de uns três anos, a partir do momento que uma determinada proprietária decidiu vedar o caminho público, invocando posse do mesmo, contrariando tudo e todos. As denúncias, queixas, informações e pareceres técnicos de pouco serviram, pois tudo continua igual e as instituições competentes (o município, entenda-se) já demonstraram incapacidade em resolver o problema (mesmo tendo a razão de seu lado e os instrumentos para o fazer). E, portanto, quem caminhar em direção a Monchique, vindo de Silves, deverá saber que a certo momento terá de afastar-se do percurso oficial da Via Algarviana, contornar uma área vedada, percorrer parte de uma estrada pavimentada, para retomar mais adiante o percurso original. E isso se não tiver de correr, pois também há cães pouco simpáticos, da mesma proprietária, que, se estiverem soltos, poderão causar mais danos do que a extensa caminhada, por si já exigente e extenuante.
E assim estamos no que à utilização de caminhos públicos respeita. Ou ao que pensamos serem caminhos públicos. Na verdade, esse estatuto vai-se desvanecendo aos poucos em Portugal da mesma maneira que os de outrora caminhos de serventia vão desaparecendo. Resta-nos, talvez, os passadiços, essas modernas auto-estradas de madeira, de custos milionários, que se impõem indomavelmente nas mais diversas paisagens, sobre terrenos públicos e privados, às quais nada nem ninguém se opõe. Quem sabe não serão estes a solução para a preservação dos caminhos públicos! Já imaginaram uma Via Algarviana toda em passadiço, desde Alcoutim ao Cabo S. Vicente?
João Ministro é engenheiro do ambiente e empresário
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