Por estranho que pareça, o meu grupo sanguíneo foi para mim um mistério durante bastante tempo. Além disso, durante a infância, por vezes, pensava que era uma extra-terrestre, oriunda de um planeta qualquer remoto. Isto creio que terá acontecido a partir do momento em que vi pela primeira vez desenhos animados do super-homem. Ele tinha vindo também de um outro planeta e, quando menos se esperava, os seus super-poderes despertavam. Mas nem se quer era isso que me seduzia, mas sim o seu teor extra terráqueo com o qual imediatamente me identifiquei. Suponho que fosse já a minha propensão de outsider, de alguém sempre um pouco ao lado, na margem ou nas margens, na periferia, independentemente do centro, que será sempre o dos poderes. Já nessa altura sentia muitas vezes não encaixar no mundo circundante. Por isso, achava que vinda de outro planeta tinha por capricho do destino aterrado no barrocal algarvio, no Peral, um pequeno sítio do concelho de São Brás de Alportel. Contudo, foi largas décadas depois que este meu aparentemente absurdo pressentimento de infância ganhou alicerces, uma raiz.
Muito antes de ir para Macau tinha pedido para saber o meu grupo sanguíneo, através de umas análises, mas o resultado vinha num impresso que, acidentalmente se danificou, mas que me levaria a acreditar ser o O positivo – algo improvável sendo filha de mãe A positivo e de pai B negativo, mas …. Passado tempo, já em Macau, aquando de uns exames de rotina pedi novamente para saber o grupo sanguíneo. A enfermeira mostrou-se surpreendida com o pedido e expliquei-lhe o caso. A resposta dela foi que seria impossível o meu grupo ser O. Ao que eu acrescentei, em tom de brincadeira: “a menos que seja extraterrestre, não?”. Ela riu-se e concordou. Passados dias, chegaram os resultados. A enfermeira telefonou-me e o diálogo que tivemos em inglês foi digno de figurar para a posteridade: It is incredible, but your blood is O!! (É incrível, o seu sangue é O), “Oh my God, so am I an alien??!”. (Oh, meu Deus, então sou uma extraterrestre?). Yes, Indeed! (Sim, certamente!) E gargalhada final.
Deste modo, a confirmação do meu estatuto de alienígena foi feita e enfermeiramente atestada, a onze mil quilómetros da minha terra de origem, o que me pareceu um caso verdadeiramente assim… «do outro mundo». Sem estar inteiramente conformada com a situação, dirijo-me ao Dr. Google para saber mais sobre questões referentes a grupos sanguíneos, genética, hereditariedade e afins. Deparo-me com uma questão de um teste (não me recordo de que disciplina), mas que resume a história da minha origem: “pode um casal, constituído por uma pessoa do grupo sanguíneo A positivo e outra B negativo, ter um filho do grupo O?”. Fiquei estarrecida a acreditar que estava ali, naquele ecrã, a chave da minha existência. E neste ponto, posso ainda acrescentar que para salientar ainda mais o meu caso, tenho uma irmã cujo grupo sanguíneo é AB, ou seja, a síntese perfeita. No meu caso, hesito na busca da solução para aquela pergunta. Receio talvez que a resposta seja a completa impossibilidade que me converterá totalmente na extraterrestre a aguardar a próxima nave para regressar ao meu planeta desconhecido. Hesito, mas decido enfrentar a realidade. A resposta é que há 10% de possibilidades. Por outras, palavras, ainda encaixo nessa percentagem que faz de mim, apesar de certa raridade, uma criatura a habitar as margens da normalidade.
Assim, aliviada por partilhar o sangue que nos une, a nós, criaturas humanas, penso que as naves espaciais podem aguardar por outras ocasiões, por outros passageiros que talvez por aí gravitem, a precisar de uma viagem para um outro planeta.
Dora Gago é professora
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