Numa das minhas incursões selvagens pela internet, em 2022 descobri uma seita novinha em folha, que cresce na região centro de Portugal, a prova cabal que somos um país de crentes ingénuos que não aprendemos nada com o tipo que nos fundou.
E lembrei-me disto porquê (perguntam vocês)?
Porque esta seita é tema de uma grande reportagem da revista «Visão» desta semana. A «coisa» dá pelo nome de «Reino do Pineal». Um ex-chefe de cozinha britânico, após «um despertar», deixou de lado o pilão, nunca mais quis saber do Salazar, largou tachos e panelas e tornou-se um guru, com um discurso saído de uma série de ficção científica de série B. E como muitas outras seitas e até religiões, tem insígnias e símbolos próprios, com «leis» (mandamentos) e seus zeladores privativos, com sistemas socioeconómicos e filosóficos instituídos e praticados e até moeda própria (Pin Coin).
Os seus «seguidores» (cerca de 100) assumem expressamente a sua «independência» face aquilo que os circunda, inclusive em relação ao País onde de facto estão… Portugal. Este grupo de «palhaços» alucinados acredita que devemos reconhecer autonomia a um «reino» cuja mensagem reúne teorias de conspiração, posições antissistema, algumas pouco originais na linha do que defendem outras seitas e… religiões. Falam do «grande reset», só não sabem o dia e a que horas.
Já aqui falei de religião e do embrutecimento que esta normalmente causa nos mamíferos aderentes, mas isto para mim é mais grave, porque me parece um cocktail perigoso de crença com «stand-up comedy». Os gajos, devotos membros deste «Kingdom», enquanto se apregoam «libertários», parece pretenderem impor as suas diferenças a outros cidadãos e a outras «comunidades». Se assim for, será um mau princípio e uma péssima prática já vista e revista.
A religião, seja ela qual for, sempre esteve presente ao longo da história da humanidade, assumindo as mais distintas formas, em tempo também eles distintos. Costumo dizer que nós, portugueses, tivemos o azar de nos calhar a religião cristã, coisa que normalmente escandaliza os meus amigos mais tementes e que normalmente acaba em tristes cenas à boa maneira cristã. Uma religião que fala em dar a outra face e que em diversas alturas da nossa história é a principal responsável pelo massacre de outros povos e culturas, só pode estar a gozar perdidamente connosco. Uma religião que observa 10 mandamentos, mas que não respeita nenhum deles está completamente a achincalhar-nos. Uma religião que dita se usamos ou não preservativo (quem são esses gajos para me dizerem o que devo colocar à volta da minha... adiante!). Uma religião que chantageia os seus crentes com um inferno, um purgatório e um «céu», e que simultaneamente se dá a si própria a autoridade de dizer quem vai para onde, não pode ser considerada uma religião, mas tão somente um centro logístico de distribuição de almas gerida com base em premissas, no mínimo, duvidosas.
Mas as seitas ainda conseguem ser piores. A seita está para a religião como a loja do comércio local está para o hipermercado: as primeiras adequam a sua oferta ao tipo de zona comercial onde se inserem, as segundas vendem indiscriminadamente a quem quiser comprar. Como podem comprovar, criar uma seita não é difícil, basta conhecer relativamente bem os papalvos que queremos evangelizar, adequando o discurso aos seus medos, às suas ansiedades e às suas necessidades. E depois é como fazer sabonetes, ou apostamos no básico e temos o sabão azul que dá para tomar banho e lavar a roupa, ou vamos para uma coisinha mais sofisticada acrescentando hidratante ou um cheirinho agradável a coco ou frutos vermelhos, que dão a ilusão que, para além de lavar, fazem mais qualquer coisinha.
Uma condição «sine qua non» de qualquer seita bem-sucedida é a figura do seu líder espiritual. Convém salientar que não será o melhor cartão de visita, aquele líder que deixou de ser Chef de cozinha. A quantidade de homens que, hoje em dia, gosta de dizer simplesmente, que sabe cozinhar está a aumentar de forma assustadora. O que é feito do velho sonho de querer ser médico ou astronauta!? Onde está aquela ambição de vir a ser jogador de futebol!?? Agora, o sucesso com as mulheres também passa pela capacidade de inovar num sedutor carpaccio de salmão… O lóbi dos cozinheiros está a vencer e estende os seus tentáculos para as seitas religiosas. As estrelas dos restaurantes são a prova de que estavam tão desesperados por atenção que nem pensaram um pouco no galardão. Uma estrela Michelin num restaurante, faz tanto sentido como galardoar uma oficina com uma estrela denominada «Punheta de bacalhau» ou «Bobó de camarão».
E depois temos os seguidores. Uma seita sem seguidores é um terrível aborrecimento. Para se ser seguidor de uma seita não são necessárias grandes habilitações: basta querer acreditar em qualquer coisa. Convém ser uma coisa assim distante e inatingível tipo: teorias de conspiração e narrativas populistas usadas para incutir medo em relação ao futuro.
Outra coisa que contribui para criar um espírito de corpo numa seita é o vestuário: pode ser mais ou menos elaborado dependendo do grau de loucura dos participantes, mas convém que seja uniforme. Neste caso específico, tudo descalço vestindo sumptuosos e longos trajes purpura e turbante protegendo a moleirinha que isto no verão aquece e bem. O que interessa mesmo é que todos se vistam de igual, tipo cardeais.
Finalmente, a parte mais importante das seitas: o financiamento. Este «Reino do Pineal» pretende expandir-se e adquirir terrenos avaliados em… 11 milhões de euros. Claro que se desconhece as origens do «pilim». Uma seita que não tenha apoios financeiros não é uma seita, é um grupo de escuteiros com distúrbios de personalidade. O apoio financeiro de uma seita não é pera doce, e depende do grau de exigência do seu líder espiritual. Normalmente o jato particular e o carro do «Cavallino Rampante» fazem parte do cerimonial, mas outros benefícios podem ser acrescentados dependendo da quantidade e qualidade dos seguidores. Neste aspeto as seitas aprenderam com a secular experiência da Igreja Cristã, hoje muito mais discreta, mas igualmente eficaz na arte de sacar o seu indiscriminadamente, sem pagar impostos, passar recibos ou quaisquer deduções à coleta.
Para todos os que acham que a cozinha, oficina ou política já não tem futuro, sugiro uma pequena reengenharia na atividade profissional: façam a vossa seita e peçam independência de Portugal. Porque nós, algarvios nunca nos lembramos disto?
Júlio Ferreira é um inconformado encartado
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