Para a Heidi Beck – obrigada!

Pensar no corpo humano como a estrutura complexa que é implica ir além do uso de metáforas e entender temas que não estão necessariamente ao meu alcance. Leio, num artigo recente do New York Times (que uma querida aluna, sabendo deste monotema, me fez chegar: basta atentar num tópico durante mais do que o habitual e ele parece aumentar a frequência com que surge à minha volta) que uma das maleitas mais comuns nas atletas de futebol é a rotura do ligamento anterior cruzado (LAC), elemento crucial – et pour cause – do joelho. A peça jornalística, da autoria de Rory Smith, chama-se «A Maldição que Persegue o Futebol Feminino» («The Curse Stalking Women’s Soccer») e terá sido suscitada porque decorre até 20 de agosto a nona edição do Mundial de Futebol Feminino, organizada pela Federação Internacional de Futebol (FIFA) e realizada a cada quatro anos (este ano, conjuntamente pela Austrália e pela Nova Zelândia – por isso, as «Navegadoras», a brava seleção portuguesa, tem jogado com temperaturas de Inverno e os relatos chegam a este cantinho a horas estranhas). Prolonga-se à extensão de um pequeno artigo científico, vai exigindo de quem lê alguma pesquisa à parte e recompensa com descobertas sobre aspectos anatómicos, mas também culturais e sociológicos.

Abre com a referência a Megan Rapinoe, jogadora norte-americana, líder da seleção dos Estados Unidos nas Olimpíadas de 2012, e à sua terceira rotura do LAC, em 2015 (que, diz-se ali, não lhe causou mais do que um rolar de olhos, no que me põe a pensar como as palavras sugerem que o corpo humano anda todo ligado e que um toque no joelho se reflete cá em cima, nos globos oculares). A lesão não impediu a atleta de protagonizar competições e de ganhar prémios: “Profissionalizou-se. [...] Representou o seu país. Ganhou uma medalha de ouro nas Olimpíadas. [...] Jogou em dois Mundiais. Ganhou um deles”. É aborrecida (à terceira, “fá-la rolar os olhos”), mas perturbam por aí além uma carreira. Ou então, sim: outros casos apontados no artigo, entre nomes sonantes da competição, são os de Catarina Macario (avançada norte-americana), da atacante neerlandesa Vivianne Miedema, de Leah Williamson e de Beth Mead, jogadoras britânicas, de Janine Beckie, do Canadá (a atual seleção campeã olímpica), ou de Delphine Cascarino e Marie-Antoinette Katoto, da seleção francesa, todas impedidas de jogar neste Mundial devido a lesões no LAC; e o mais trágico dos relatados, o da britânica Claire Rafferty, que, aos 30 anos de idade e ao fim de três lesões, decidiu abandonar o futebol devido ao medo que sentia assim que entrava no campo.

O problema afeta tantas atletas que a «maldição» do título ganha a dimensão de epidemia. Mas, mais do que concentrar-se nos aspectos médicos da lesão (sobre os quais também informa), o artigo de Rory Smith leva a considerações acerca das condições desportivas em que estas atletas competem e acerca daquela que está talvez na origem de parte destas (e doutras) lesões: a desigualdade do desporto quando se chega à grande questão dos géneros. Desde logo, por exemplo, a inexistência de calçado próprio para a anatomia feminina, cujo pé, diz-se, tende a ter “o calcanhar mais estreito que o masculino, a zona dos dedos mais larga” (até saltei da cadeira ao ler isto: por que raios nos convencem da «elegância» de sapatos de bico fino...?), a “planta do pé mais elevada” (“higher arches “); e tende, além do mais, a sofrer mais alterações ao longo do tempo do que o pé masculino, sobretudo “durante e após a gravidez” (pudera...). Algumas pesquisas científicas levadas a cabo, pelo menos no que o artigo refere, por uma empresa especializada em calçado desportivo para mulheres, provaram que o pé feminino “‘interage de maneira diferente com o solo’” (terão as mulheres, afinal, os pés menos assentes na terra...?) e é “mais suscetível a lesões crónicas e agudas, que incluem a rotura do LAC”. Mas não é só a anatomia que potencia lesões.

Este meu interesse pelo joelho, aliado à coincidência do Mundial de Futebol Feminino que agora decorre, levou-me ainda a refletir, através deste artigo, nas diferenças de condições estruturais disponíveis para as atletas de alta competição: por serem divisões e equipas com menos meios (patrocínios menos chorudos, menores apoios oficiais), não têm direito, por exemplo, a voos especialmente agendados – ou seja, sujeitam-se a horários e a durações de voo que imagino mais extenuantes do que no caso das equipas masculinas congéneres (penso logo nas deslocações das atletas portuguesas e outras da Europa Ocidental até aos Antípodas, onde agora jogam) – e, além do mais, estão condenadas a jogar em relvados igualmente menos bondosos, de relva sintética, ou cuja manutenção fica abaixo da que é dedicada às seleções de homens. A interação destes pés propensos a lesões com a terra mal preparada alcança mais longe do que apenas o toque de um membro no solo.

Ana Isabel Soares é professora

Crónica publicada em:

Foto: Vasco Célio

O artigo de Rory Smith pode ser lido através desta ligação: https://www.nytimes.com/2023/07/19/sports/soccer/womens-world-cup-soccer-torn-acl.html