Portugal é apontado como um dos países mais antigos da Europa, por ser daqueles que tem as suas fronteiras consolidadas há mais tempo. Com cerca de nove séculos de história, construiu um leque de estratificações sociais que nenhuma evolução ou revolução consegue burilar. Podemos dividir a organização social em duas monumentais escadarias: títulos e filhos d’algo.

Ao longo do período monárquico foram imensos os títulos nobiliárquicos atribuídos para dispor os privilegiados na sociedade, dando a cada uma posição, qual jogo de xadrez:

Na Casa Real tivemos Rei/Rainha, Príncipe Real, Príncipe/Princesa, Infante, Duque-Parente, Marquês-Parente, Conde-Parente;

Na Nobreza Titulada destacavam-se os títulos de Duque Real, Duque, Marquês, Conde, Visconde, Barão;

Não sendo propriamente nobreza, mas com privilégios idênticos tínhamos os Senhorios;

Na Fidalguia encontramos os insignes Fidalgo Cavaleiro, Fidalgo Escudeiro, Moços-Fidalgos, Cavaleiro Fidalgo, Escudeiro Fidalgo, Moço da Câmara, Escudeiro, Cavaleiro.

Com as ideias do iluminismo e do liberalismo, iniciou-se um ataque à estratificação privilegiada das sociedades. Todos deveriam nascer em pé de igualdade e ascender por si. Na teoria parece um princípio interessante, mas foi incapaz de remover a necessidade social de diferenciar os homens em função de um qualquer título. Com a implantação da República, os Comendadores passaram a ocupar o lugar dos antigos Condes, Viscondes e Barões do Liberalismo, também com uma hierarquia curiosa: Comendador, Oficial, Cavaleiro e Membro-Honorário. Já não recebem um brasão para colocar no frontispício de casa, mas recebem um colar ou uma medalha que podem emoldurar a decorar a sala. Os Presidentes de Câmara substituíram os senhorios, principalmente nos tiques de vassalagem que muitos exigem. Para compor o ramalhete das distinções sociais, que evidenciam a colocação num degrau diferente e mais honroso, surgiram os doutores e engenheiros, títulos inicialmente dependentes de um grau académico, mas que no presente parece que se transformou num acto de cortesia.

Esta escadaria sempre se fez projectar numa outra, dependente desta, mas com efeitos mais perversos. É a escadaria dos Fidalgos, ou dos «filhos d’algo». Se é certo que a República tinha como principal objectivo o aniquilar da fidalguia, não menos correcto afirmar que, mais de um século depois da implantação do regime repúblico e passado meio século sobre a revolução de Abril, assistimos ao surgimento de uma fidalguia rebuscada, mas muito mais sinistra, por se mover nos meandros obscuros do poder, mascarando-se de democrática. De um momento para o outro, somos surpreendidos pela ascensão social e política dos novos «filhos d’algo». Os novos «filhos d’algo» são aqueles que conseguem chegar ao topo dos poderes de decisão tendo como principal feito curricular o facto de ser filho de alguém que exerce ou exerceu um cargo de poder.

Se, no antigo regime, essa ascensão era natural, assumida e espectável, actualmente dá muito mais trabalho e requer algum investimento de médio ou longo prazo. O detentor do poder, além de organizar a sua vida e a coisa pública, tem de construir os andaimes por onde anda o «filho d’algo», preferencialmente transmitindo sempre uma ideia de democracia. Internamente, cada um na sua organização partidária, tenta garantir que o «filho d’algo» ocupa um lugar de destaque na organização interna, ascendendo de posição a cada eleição, com o enriquecimento curricular o cargo anterior. Depois pede a um comparsa que nomeie o «filho d’algo» para um cargo qualquer, discreto, só para enriquecimento curricular e para dar vantagem em concursos futuros pela experiência profissional. Assim, passo a passo, sem grande esforço e muito pouca capacidade ou competência, o «filho d’algo» atinge uma dimensão que lhe permitirá vir a ser o que quiser.

Mudam-se os tempos, mudam-se os personagens, mas nunca mudam as vontades.

Nuno Campos Inácio é editor e escritor

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