O desenho é uma pronúncia, como a da fala. Onde nascemos, que influência tiveram em nós as primeiras vozes que ouvimos, as corruptelas, o som e a intensidade que ele transmite, se de agressão ou carinho, tudo aparece no desenho da escrita.
Agustina Bessa-Luís


Inquietação – é o que me ocorre quando observo as obras de Paula Rego.

Inquietação – é o que sinto quando ouço as palmas de alguém que quer afugentar as centenas de pássaros chilreadores que regressam a casa, ao fim da tarde. Sim, é um espectáculo merecedor de palmas. Eles – os melros e os pardais – cantam, todos juntos, uma canção de reencontro que conta uma história, como se de um ritual se tratasse. Primeiro chegou a árvore, a explosão lenta de uma semente no meio do asfalto. Depois veio o primeiro pássaro para morar num pequeno ramo. A seguir, esse pássaro chamou todos os outros para habitarem a copa daquela enorme árvore entalada entre a estrada e o prédio de quatro andares. Inquietação e angústia. Sinto compaixão pelos pássaros, essas criaturas tão frágeis e preciosas, chilreadoras, mas que ninguém quer perto das suas janelas. As pessoas batem palmas e eles calam-se durante três segundos. E logo recomeçam o poderoso chilreio em voo vertiginoso. A liberdade dos pássaros é um espectáculo a que assisto, humildemente, ao crepúsculo.

Paula Rego foi estudar na Chelsea School of Art (1952), em Londres e, mais tarde, enquanto Artista Associada da National Gallery teve direito a um atelier no edifício do museu e a um salário. Isso permitia-lhe dedicar-se à pintura, a tempo inteiro. Era um espaço estranho, com um grande pé direito, sem janelas. Que impressão daria à artista? Atrevo-me a inferir que aquele atelier não seria o ideal para ela, uma vez que a amplitude do espaço poderia provocar-lhe uma sensação de contenção. O atelier: demasiado amplo, demasiado largo nas suas linhas direitas, nada reconfortante. Digo reconfortante no sentido da ingestão de comida que implica a adjectivação do paladar: doce, amargo, acre, ou apenas insonso. A obra de Paula Rego é tudo menos insonsa, tem qualquer coisa de grave e assustador.

Paula Rego nasceu em 1935, em Portugal. Os seus temas de eleição partem de uma cultura familiar, e nos seus quadros são pintados os porquês das coisas que acontecem às pessoas retratadas. A pintora reconhecia os actos quotidianos como possibilidades de procedimentos artísticos complexos, os quais sempre me escaparam. Lembro-me que, até há bem pouco tempo, desviava o olhar dos seus quadros, com o pudor próprio de uma espectadora preconceituosa e submissa ao surrealismo romântico: eu. A pintora faleceu em 2022 e senti a imperiosa necessidade de pressupor que eu estaria, de facto, enganada a seu respeito. Acredito que devemos interessar-nos pela obra artística enquanto os artistas estão vivos e, deste modo, foi uma necessidade envergonhada, confesso, por tardia.

Observei reproduções de obras de Paula Rego e dei por mim a inferir que os seus desenhos eram a sua escrita. Uma escrita intensamente barroca e complexa, mas ao mesmo tempo permissiva, deixando entrar as minhas próprias impressões leigas. Vislumbrei a realidade aguda dos universos femininos, simbólicos, controversos, que a artista quis deixar inscritos no tempo. A pintura «Fada Azul e Pinóquio» (1995) falou-me de temas da infância, esse universo onde fui plantada desde que nasci e de onde nunca mais saí: sou filha, mãe, sou educadora de infância. Sou mulher e também sou uma fada, tendo em conta tudo o que passei na resolução de inúmeros constrangimentos e problemas que assolaram a minha vida, de uma forma apenas subtil, quase por magia. As mulheres são assim, como fadas azuis para as crianças. A mãe, por exemplo. E todas essas fadas acreditam que têm o condão de esculpir as crianças como se estas fossem bonecos de madeira, com recompensas e castigos. A mãe e o seu filho, por exemplo. Mas não: uma criança é muito mais do que matéria a esculpir e a fada de hoje já não faz magias. Paula Rego cumpriu o seu propósito de nos contar histórias de mulheres que não sabiam onde pousar o medo. Elas não sabiam, mas Paula Rego atirou esse medo para o sítio certo: a pele da tela. Agora, podemos olhar o medo de frente, durante o tempo que quisermos, sem termos medo daquele medo.

Adília César é escritora

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