Domingo, 8 da manhã de um dia de verão. O areal remexido. Pegadas de humanos, de cães e de pássaros; escavações e construções mais ou menos habilidosas, decoradas com conchas e pedrinhas e encimadas por torres de cana; beatas; uma pá esquecida; um ramo de rosas vermelhas. O caminho é o de sempre: em direção à Barrinha. Este lugar já foi um segredo sussurrado por poucos. Hoje são muitos os que o visitam, aproveitando a avenida que assoma quando escorre a maré. O chão fica mais firme e a caminhada mais leve. Move-os o exercício, a busca do isolamento, da sensação de que, apesar de tudo, ainda é possível ter uma praia só para si. Move-os, seguramente, a vista deslumbrante.

A esta hora, apenas gaivotas. Espreguiçam-se nos cabeços postos a descoberto na baixa-mar. De um lado, o Atlântico, as ondas, uma promessa de mar aberto. África imaginada logo ali. O olhar tenta em vão descortinar Marrocos. Do outro lado, o fundo roxo dos cerros; Faro; um avião que ganha velocidade na pista e sobe. Identifico a companhia aérea pelas cores que ao longe destrinço. Imagino o seu destino, quem irá lá dentro. Será o início de uma viagem ou um regresso de férias? Este jogo é um hábito antigo. Resquícios da infância e da adolescência. Das muitas horas passadas a observar os aviões, junto à rede do aeroporto, nas varandas da praceta, ou deitada na areia do Ilhote da Cobra.

Percorro o horizonte com o olhar. Onde está o Ilhote? Demoliram as casas dos mariscadores. Não é fácil perceber. À memória vêm-me tempos em que a pequena ilha era o meu observatório. A partir dali procurava o lugar onde agora me encontro. Só que não era o mesmo lugar, não era a mesma paisagem. Hoje a Barrinha é luminosa e convidativa, mas desde cedo aprendi a temer este corredor de mar. As narrativas dos pescadores e mariscadores eram aterradoras, dignas de um Cabo das Tormentas. Repetiam histórias de naufrágios com consequências dramáticas: afogaram-se, quase se afogaram, perderam as embarcações… Os náufragos? Gente do mar, nascida com os pés na água salgada, mas que raramente aprendia a nadar. Gente que fazia a temida travessia entre a ria e a costa por necessidade. Mas também turistas incautos, marinheiros de fim-de-semana, que se deixavam levar por uma tranquilidade enganadora, ou que se atreviam a desafiar o Mostrengo, confiando numa sabedoria que a carta de marinheiro certificava.

Os relatos lembravam insistentemente que o mar não é para brincadeiras, que mete respeito. Que distinguir a proa da popa e um nó em oito de um nó direito, de pouco serve, numa aflição. – E depois somos nós que temos de ir buscá-los – desabafavam.

As histórias eram partilhadas durante a maré cheia, quando o mar empurrava para terra e se jogava às cartas para passar o tempo. Jogava-se ao codilho, com rebuçados tão passados de mão em mão que já não eram comestíveis, mas que, naquela ilha, valiam o seu peso em amêijoa boa.

Marido e mulher vão a jogo. Um contra o outro. Um duelo. Ela perde os últimos rebuçados e remata: – Ah, esgarçade! Havia de te dar uma tração tã grande que morresses. Atirava-te à canal e ias pela Barrinha. Nem funeral te pagava, maldeçoade!

As gargalhadas ainda me ecoam na cabeça. Descortino, lá ao fundo, o que penso ser o Ilhote.

Começam a chegar pessoas. Uns, de barco, com pranchas de surf; outros empunham garrafas de água com conquilhas. Um homem atravessa a barra a pé. A água cobre-lhe o umbigo. Avança tranquilamente. Continuo sozinha, em busca de um qualquer vestígio que confirme as paisagens da minha memória.

Sílvia Quinteiro é professora

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