Fez vinte anos em maio que fechei a escrita daquilo que viria a ser defendido como tese de doutoramento. Perguntam-me às vezes sobre o que era e de cada vez que respondo penso numa resposta diferente, como se a olhasse a partir de outra esquina (do tempo, de um espaço – dei-lhe o título «Espaços do tempo»). Um dos tópicos – vá lá – que me acompanharam nos cinco ou seis anos que levei a escrever nela foi o objeto principal sobre o qual um pensador alemão, Walter Benjamin, se debruçava (com certeza, também literalmente) nos anos que lhe antecederam a morte: as estruturas arquitetónicas, urbanas, comerciais que se encontram entre muitas ruas de Paris (assim como noutras cidade pelo mundo), a que os francófonos chamam «passages», os anglófonos «árcades», por cá «passagens» e os alemães «passagen». O projeto de Benjamin chamou-se, precisamente, Passagenwerk, ou obra das passagens. Não se sabe se seria esse o título que lhe daria, pois estava em marcha quando o autor morreu (estando ele a tentar marchar-se de França para Espanha, daí para Portugal e para os Estados Unidos, eram os anos da Segunda Guerra Mundial e ele malquisto pelos que dominavam no seu país natal); nem jamais se saberá qual a sequência final que haveriam de ter os inúmeros textos que foi acumulando a propósito de conceitos como História, Modernidade, Presente, entre outros, que os filósofos se aprazem a explorar.

(Passage des Panoramas)

(Passage Jouffroy)




















A mim, interessou-me aquele raciocínio que ajudava a entender o que é o mundo de hoje (aquele que habito, aquele em que reflito) através da exploração mental de um tipo específico de edifício ou organização de construções. Seduziu-me a possibilidade de pensar nas galerias comerciais, com as suas coberturas envidraçadas a deixar entrever o céu de Paris, como lugares onde se formou o modo atual de habitar as cidades: de se relacionar cada indivíduo com a sua própria imagem em sociedade (porque ali se tornou habitual ir ver as montras e estas serviam – servem – como espelho de quem as olhava); de fazer coabitar negócios díspares (lojas de postais com restaurantes; sapateiros com espetáculos de variedades; antiguidades com boulangeries), no mesmo sentido em que cada pessoa, hoje, se entende como um feixe complexo de pulsões distintas, sensações contraditórias, multidões concentradas.

(Passage des Panoramas)
Revisitei recentemente algumas destas passagens: surpreendeu-me o relativo abandono a que parecem votadas (em algumas não foi sequer possível entrar), mesmo quando se percebe que as lojas ainda funcionam. Como tantos outros edifícios de pequeno comércio no centro das cidades (de rendas que imagino elevadíssimas e rendimentos de sinal contrário), entregam-se a um aparente final de existência: animais selvagens cujo surgimento significou um cúmulo de civilização e que hoje se enfeitam e, mesmo empalhados, anulados, mortos, surpreendem, de altivos.




Ana Isabel Soares é professora

Crónica publicada em:

Foto: Vasco Célio