Oh, sim, eu estou tão cansado
Mas não pra dizer
Que eu não acredito mais em você
Com minhas calças vermelhas
Meu casaco de general
Cheio de anéis
Vou descendo por todas as ruas
E vou tomar aquele velho navio (…)
Vapor Barato, Jards Macale e Waly Salomão
Tenho dupla nacionalidade. Já vivi em Portugal metade da minha vida e, mesmo assim, de vez em quando alguém me lembra de que sou estrangeira. Que serei sempre estrangeira, não importam os anos que tenha vivido por cá. O que, de um modo geral, não me incomoda – conheço minha condição. Não de estrangeira, mas de cosmopolita, de alguém que vive no mundo, mesmo que o mundo, seja quase sempre, o espaço ao nosso redor. “Moro no Menino de Deus, do qual Porto Alegre é apenas o que há em volta”. O escritor Caio Fernando Abreu, que escolheu um autoexílio dentro do próprio país, fala de sua cidade, que não é o todo que está em volta, mas seu cantinho, seu bairro, seu microcosmo. E assim resume a nossa relação com o espaço – ela é metonímica. Criamos a nossa própria cartografia, que se compõe de fragmentos que montamos através do traçado do nosso desejo. Saio do bairro se meu desejo está além, mas minha casa, minha cidade é bem mais pequena e circunscrita não só geográfica, mas também emocionalmente. Há uns anos, Walter Sales fez uma viagem a Lisboa no seu filme Terra Estrangeira. Seus personagens escolhem Lisboa como destino para um autoexílio após uma grande desilusão com seu próprio país. Lisboa é estrangeira, mas é também a cidade mãe, centro de um país que partiu para o atlântico e desbravou uma nova-velha terra. É, de alguma maneira, uma terra não estrangeira, uma doce recordação, um déjà-vu. “Ai como eu queria tanto agora ter uma alma portuguesa para te aconchegar ao meu seio e te poupar esta futuras dores dilaceradas”[1]. Mas ao chegar a Lisboa, aqueles que vieram, talvez para ficar, sentem-se como se estivessem “por fora do movimento da vida” e parece que desaprenderam “a linguagem dos outros”. Há um código especial que eles não conhecem. Há uma palavra-passe que não lhes foi fornecida. E a cidade, tão grande, faz com que eles se misturem no mundo dos invisíveis, que passam pelas ruas e ninguém os vê. Ninguém cumprimenta, ninguém conhece. É uma existência que nega a própria existência. É como se o corpo se fundisse ao passeio. E os olhos do invisível, não vê a cidade nova que se está a sua frente, mas vê o porto, o Atlântico, tão imenso, atravessado na garganta de uma dor que não consegue falar. E o filme mostra Lisboa fragmentada, marginal, magnífica quando distante, intangível. E os personagens correm para a praia. E um navio, ao longe, parte ou chega. Partir e chegar, como diz a canção, são só dois lados de uma mesma viagem. Moro no menino de Deus... Todos moramos no Menino de Deus, de alguma maneira. E o mundo é apenas o que há em volta.
Mirian Tavares é professora
Crónica publicada em: