Escrevo desde o barrocal algarvio, entre quatro paredes e, durante mais uma hora, no máximo, janelas escancaradas. Tive de chegar aqui cedo: além do calor, o mês de agosto traz para estas bandas muito mais automóveis nas estradas – é preciso negociar horas, fluxos, sombras. Chegando-se cedo ao meio do campo, é para se ficar o resto do dia; o resto das horas de luminoso dia, sem clemência, que o sol não a tem. Qual praia, qual nada... ir até ao mar é um suplício que o ruído da multidão agrava. Aceita-se, pois, o campo, o abrigo das paredes, num acoitar-se lento. Até que tenha de fechar portadas e vidros, entra para as divisões da casa um batalhão de seres: moscas, besouros, vespas, os dois cães que lhe pertencem e se bandeiam entre fresco e fresco. Entram e saem, ventilando o ar no movimento (pouco corrido o dos mais encorpados, veloz e murmurado o dos insetos). Na estrada, passa o carro ocasional, ou o caminhante distraído – se o acompanha algum cão, é a festa dos de casa, que em latidos estrepitosamente debandam até à vedação, saudando, enxotando, alegres ou irados, quem saberá? Finda a algazarra – a que quase nunca os de fora respondem, por medo ou despeito –, atiram-se aos baldes da água, que sorvem naquilo que me continua a ser a misteriosa capacidade de transportar para dentro das mandíbulas seja que líquido for através de uma superfície como a língua canina.

O Verão pleno no barrocal do Algarve é este lugar que apetece apelidar como silêncio, mas que assenta num droning constante, amarelo escuro ou branco ausente: o peso do canto das cigarras. Diz-se «cigarras» e pensa-se (penso eu) que existe no mundo uma cigarra única, multiplicada pelas temperaturas altas, que cega-e-rega este burburinho incómodo e omnipresente. Nada mais enganoso: a que ouço sem fim a acompanhar a canícula parece ser uma numerosa banda de C. barbara lusitanica, ou uma gigante família de T. tomentosa. Sabe lá um ser humano o que se passa no mundo dos outros animais... Sabem alguns seres humanos, isso sim. Sobretudo, para os nossos lados, cientistas e investigadores do projeto Cigarras de Portugal, valiosa ideia e melhor concretização da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Conhecer deixa-me perceber – e perceber, conforme diz a cantiga, “é conceber / águas de pensamentos”, alguma forma de refresco nestes dias quentes. Cantem cigarras, cantem e desencalmem este ar, o peso desta atmosfera em que as folhas das alfarrobeiras parecem estar desenhadas numa tela, ou vibrar ao quase nada, ao resquício trocista de uma brisa que, afinal, se avizinha e se transforma no som de uma motoreta. Verão. Pesado e sonoro Verão. Canta.

Ana Isabel Soares é professora

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Foto: Vasco Célio