“Felizmente, graças a inesgotável generosidade da imaginação, cá vamos suprindo as faltas (…) Inventando chaves para abrir portas órfãs de fechadura ou que nunca a tiveram”.
José Saramago, A viagem do elefante


Ser destituída de sentido de orientação e, simultaneamente, distraída pode conduzir a percursos tortuosos. Pior ainda, se vivermos em prédios cujos apartamentos são iguais ou muito parecidos.

Na verdade, nos dez anos em que vivi em Macau, paralelamente à carreira académica, que me levou de professora auxiliar a associada e a directora do departamento de Português, desenvolvi uma outra: a de violadora acidental de fechaduras alheias.

Numa dessas vezes, vivia eu no 11.º andar do edifício Kinglight Garden (em cantonês Kam Lei Da), no apartamento 11C. Certa noite, vinda das aulas na universidade que terminavam às 22h, já perto do início do Ano Novo Chinês, entro no prédio, subo ao 11.º andar e deparo-me, na porta do meu apartamento, com umas decorações lindas alusivas à quadra. Coisas vermelhas, vistosas para darem sorte. Fiquei muito comovida a pensar que teria sido gentileza do meu senhorio. Tentei entrar em casa, mas a chave não encaixava na fechadura. Forcei, experimentei todas as posições possíveis e nada. Teria a fechadura ficado emocionada também? E de tantas lágrimas choradas de alegria, inchou, empanou? Até que, de súbito, olho para o cimo da porta e o C tinha-se transformado em K! Não, isso já não fazia parte da decoração. O edifício tinha três blocos todos iguais e eu entrara no errado.

Depois de mudar para os apartamentos na Universidade, também eles todos iguais, as situações repetiram-se, tendo ido para o 8B dos vários edifícios e experimentado múltiplas fechaduras. No campus, havia a particularidade de os apartamentos só trancarem do lado de fora com a chave, ou acionando a tranca do lado de dentro. Isto fazia com que qualquer pessoa pudesse entrar se a porta não estivesse trancada. Sei de um colega que, por acidente, entrou no apartamento de uma outra colega nossa pensando que era o dele. Apercebeu-se ao ser recebido por um cão branco, sendo que o dele era preto. Então, ao ver o cão errado, saiu subrepticiamente, de marcha atrás, antes de ser visto pela habitante daquele apartamento, cujo feitio era complicado e que estaria na cozinha.

No meu caso, também numa sexta à noite, também me entrou pela casa adentro um homem chinês desconhecido - um susto mútuo e um grito em coro.

De resto, tive sempre sorte com as muitas fechaduras forçadas, pois nunca ninguém me abriu a porta nem pediu explicações.

Contudo, regressada a Portugal, era de esperar que também esta minha carreira se encontrasse em vias de extinção, mas não, apenas mudou. Aconteceu em Junho quando fui convidada, no âmbito da participação da ASSESTA (Associação de Escritores do Alentejo) que íntegro, para uma sessão sobre Geografias Literárias, na Feira do Livro de Beja. Como, na manhã seguinte, tinha uma sessão de autógrafos, fiquei alojada, tal como outros participantes, no Centro Unesco. Os quartos não tinham número visível, por isso, como me conheço, fixei que em frente ao meu havia um quadro específico. Depois da sessão na Biblioteca, fui jantar com os amigos da Assesta também envolvidos na sessão. Regressei ao quarto talvez pouco depois da meia noite. Introduzi a chave na fechadura, rodei, forcei, estrebuchei, até que… Alguém do outro lado abriu a porta! Desfiz-me em desculpas, pois claro que o meu quarto era o outro, mas o quadro ficava no meio dos dois. O meu talento para os pontos de referência cada vez mais aprimorado. No outro dia, a jeito de redenção ofereci à minha vítima, editora e mediadora de leitura, o meu Palavras Nómadas. Que ela leu e sobre o qual teve a generosidade de escrever um lindo texto, publicado no Diário das Beiras.

Em suma, este é o exemplo de como a violação de fechaduras, o forçar a porta errada nos pode levar a uma porta certa, abrindo caminhos para novos conhecimentos, o diálogo, a partilha e a amizade. Além disso, importa, como referiu Saramago, através da imaginação, “inventarem-se chaves para abrir portas órfãs de fechadura ou que nunca a tiveram” – e são tantas essas portas, começando pelas do conhecimento do Outro, passando pelas da compreensão, da solidariedade…

Dora Gago é professora

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