
Yin e Yang, água e azeite, noite e dia. Somos tão
obcecados por dicotomias
que não nos limitamos a aplicá-las ao universo e às circunstâncias da vida. Identificar
contrastes é frequentemente uma maneira simples e eficaz de nos classificarmos.
E dividimos portanto a humanidade entre as pessoas dos gatos e as dos cães; as
do café e as do chá; as dos doces e as dos salgados; as da praia e as da
montanha; as que gostam do Ronaldo e as que gostam do Messi… As redes sociais
ajudam a sedimentar esta fórmula. Consciente ou inconscientemente, cada
utilizador projeta uma imagem de marca que, amiúde, se constrói a partir de uma
destas dicotomias. Mas não nos preocupemos, cãezinhos ou gatinhos, são ambos
vencedores nesta corrida pela simpatia alheia.
E retomo a minha ideia inicial: a da necessidade de nos definirmos por oposição a. Da vida regida pela ideia de que tudo é uma competição e uma escolha. No fundo, de uma redução da pessoa a algo de que gosta, mas que, provavelmente, não lhe ocupa mais do que alguns minutos por dia ou algumas semanas por ano. Uma visão simplista. Talvez necessária, para que possamos sentir que alguma coisa em nós está arrumada. Que crescemos. Que temos uma personalidade definida. E, todavia, espante-se, é possível gostar de cães e de gatos. Há quem beba chá e café, sem abdicar dos seus valores. Há mesmo quem alterne entre férias na praia e na montanha ⎼ esses inconstantes sem princípios… Já para não falar naqueles que mudam com o tempo. É a idade…
De resto, e por falar em idade, uma das grandes fronteiras que nos distingue dos outros estabelece-se entre aqueles que gostam de fazer anos e os que semanas antes do dia fatídico já se olham ao espelho à procura de uma nova ruga, de um cabelo branco, ou de qualquer outro sinal da passagem do tempo. E aqui está um drama que sempre tive dificuldade em compreender. Cresci com uma avó que recordava com grande humor ter dito a alguém que a sogra tinha falecido já muito velhinha, aos 53 anos. Uma mãe que a cada década que passava dizia que talvez daí a 10 anos se sentisse velha. Foi adiando o estatuto e nunca lá chegou. Um avô que num ano fazia 49 anos, no seguinte 50 e no subsequente novamente 49, tendo vindo a falecer quarentão, à beira dos 80.
Expressões como «a idade é um número» ou «tenho 60, mas uma mentalidade de 20» arrepiam-me. Há, porém, episódios que me dão que pensar. Certo dia, pedi a um aluno que imaginasse que eu era uma turista e me sugerisse um restaurante e um bar. O restaurante surgiu de imediato. Depois o silêncio, seguido de uma conversa entre dentes com a colega do lado. Estava hesitante. Não sabia o que responder. Pedi-lhe para dizer o nome de qualquer bar que conhecesse. Certamente já tinha saído à noite na cidade e a aula tinha de avançar. Respondeu-me que conhecia muitos bares: ⎼ Só não estou a ver um, assim, para a sua idade! ⎼ Eu tinha então acabado de fazer 30 anos.
Hoje, desloquei-me a Lisboa de comboio. No regresso, vi um rapaz a ajudar uma senhora idosa a colocar as malas dentro da carruagem. Admirei o gesto, a educação. E estava eu neste pensamento, quando o jovem deitou mãos à minha mala e galgou as escadas com um único passo: ⎼ Deixe lá, minha senhora. Eu ajudo. ⎼ Nem tive tempo para protestar. Para lhe dizer que ainda consigo carregar a minha própria bagagem, que a idade é um número, que os 50 são os novos 30, sei lá... E é nisto que penso hoje, em dia de mais um aniversário. O primeiro em que me encontro dividida entre a alegria de festejar e um olhar apreensivo para o espelho. Em que não sei a que grupo pertenço afinal. Num limbo. Nem preto nem branco, cor de burro quando foge. Ai, de mim!
Sílvia Quinteiro é professora
Crónica publicada em:
REVISTA ALGARVE INFORMATIVO #407 by Daniel Pina - Issuu
E retomo a minha ideia inicial: a da necessidade de nos definirmos por oposição a. Da vida regida pela ideia de que tudo é uma competição e uma escolha. No fundo, de uma redução da pessoa a algo de que gosta, mas que, provavelmente, não lhe ocupa mais do que alguns minutos por dia ou algumas semanas por ano. Uma visão simplista. Talvez necessária, para que possamos sentir que alguma coisa em nós está arrumada. Que crescemos. Que temos uma personalidade definida. E, todavia, espante-se, é possível gostar de cães e de gatos. Há quem beba chá e café, sem abdicar dos seus valores. Há mesmo quem alterne entre férias na praia e na montanha ⎼ esses inconstantes sem princípios… Já para não falar naqueles que mudam com o tempo. É a idade…
De resto, e por falar em idade, uma das grandes fronteiras que nos distingue dos outros estabelece-se entre aqueles que gostam de fazer anos e os que semanas antes do dia fatídico já se olham ao espelho à procura de uma nova ruga, de um cabelo branco, ou de qualquer outro sinal da passagem do tempo. E aqui está um drama que sempre tive dificuldade em compreender. Cresci com uma avó que recordava com grande humor ter dito a alguém que a sogra tinha falecido já muito velhinha, aos 53 anos. Uma mãe que a cada década que passava dizia que talvez daí a 10 anos se sentisse velha. Foi adiando o estatuto e nunca lá chegou. Um avô que num ano fazia 49 anos, no seguinte 50 e no subsequente novamente 49, tendo vindo a falecer quarentão, à beira dos 80.
Expressões como «a idade é um número» ou «tenho 60, mas uma mentalidade de 20» arrepiam-me. Há, porém, episódios que me dão que pensar. Certo dia, pedi a um aluno que imaginasse que eu era uma turista e me sugerisse um restaurante e um bar. O restaurante surgiu de imediato. Depois o silêncio, seguido de uma conversa entre dentes com a colega do lado. Estava hesitante. Não sabia o que responder. Pedi-lhe para dizer o nome de qualquer bar que conhecesse. Certamente já tinha saído à noite na cidade e a aula tinha de avançar. Respondeu-me que conhecia muitos bares: ⎼ Só não estou a ver um, assim, para a sua idade! ⎼ Eu tinha então acabado de fazer 30 anos.
Hoje, desloquei-me a Lisboa de comboio. No regresso, vi um rapaz a ajudar uma senhora idosa a colocar as malas dentro da carruagem. Admirei o gesto, a educação. E estava eu neste pensamento, quando o jovem deitou mãos à minha mala e galgou as escadas com um único passo: ⎼ Deixe lá, minha senhora. Eu ajudo. ⎼ Nem tive tempo para protestar. Para lhe dizer que ainda consigo carregar a minha própria bagagem, que a idade é um número, que os 50 são os novos 30, sei lá... E é nisto que penso hoje, em dia de mais um aniversário. O primeiro em que me encontro dividida entre a alegria de festejar e um olhar apreensivo para o espelho. Em que não sei a que grupo pertenço afinal. Num limbo. Nem preto nem branco, cor de burro quando foge. Ai, de mim!
Sílvia Quinteiro é professora
Crónica publicada em:
REVISTA ALGARVE INFORMATIVO #407 by Daniel Pina - Issuu