Não há estrelas no céu a dourar o meu caminho
Por mais amigos que tenha, sinto-me sempre sozinho
De que vale ter a chave de casa para entrar?
Ter uma nota no bolso p'ra cigarros e bilhar?
Carlos Tê /Rui Veloso
«Não há estrelas no céu» é uma canção de Rui Veloso, datada de 1990, que aborda vários dos problemas da adolescência, as mudanças no corpo, as dores de crescimento, os amores e desamores, a sensação de que o mundo todo conspira contra os adolescentes, de que ninguém os compreende. Neste contexto, as estrelas metaforizam a falta de esperança no futuro. E vem-me à mente esta canção, quando numa aula, após a leitura de umas frases que referem a Via Láctea, me apercebo de que os meus alunos a desconhecem completamente. Isto sucede, por coincidência, quando no céu brilha a última e mais brilhante «super lua» (vivemos no tempo em que tudo é «super» ou «extra» ou algo semelhante) do ano, coincidente, em Macau com o Festival do Bolo Lunar, ou Festival do Meio do Outono, «Chong Chao», realizado no décimo quinto dia do oitavo mês do calendário lunar, tendo sido, este ano, a 29 de Setembro, tempo de reunião familiar em que se come e oferece o bolo lunar. Com uma história de mais de 3.000 anos, esta festividade tem como uma das suas origens a deusa da lua Chang’e, que bebeu a poção da imortalidade destinada ao marido e voou para a lua onde vive num palácio de gelo. Além disso, este era o tempo em que os imperadores e o povo veneravam a lua de Outono e agradeciam as colheitas.
A verdade é que em Macau, se a lua ainda era vista e celebrada, era por vezes difícil ver as estrelas devido à enorme poluição visual e também atmosférica. As estrelas habitariam um qualquer lugar oculto nas margens dos poderosos neóns multicolores. Eram invisíveis aos olhos.
Cresci no campo, no barrocal algarvio, sob mantos de estrelas, a contemplar as pegadas da Via Láctea, a sonhar com ela de olhos abertos, nas noites quentes de Verão em que se dormia na varanda, a pensar em como era pequenina, mais tarde, em como nós seres humanos eramos tão pequeninos neste nosso pequeno planeta, num canto esquecido do universo, a imaginar que outros seres poderiam habitar outros planetas, outras galáxias, a pensar como limitados serão sempre os nossos conhecimentos sobre o Universo, por mais estudos que se façam, por mais que se evolua. Aqui lembro a emoção que senti ao descobri que a lua podia deixar de ser mentirosa se mudássemos de hemisfério e a emoção que senti ao ver nos céus uruguaios, pela primeira vez, o Cruzeiro do Sul. Em contrapartida, penso nos jovens de hoje, de olhos colados aos ecrãs dos telemóveis para quem não existem estrelas, nem Via Láctea, que ignoram as fases da lua. E isto, posso dizer que irmana orientes e ocidentes, que em Macau ou no Alentejo, ou em qualquer outra região, não haverá grande diferença. De uma ponta à outra do planeta a mesma desconexão com a natureza, com todo um universo que integramos. E as consequências disto? Talvez o narcisismo crescente, depressivo, o egocentrismo doentio de quem se sente no centro do mundo – e não me refiro apenas aos jovens, mas também a todos os que já viram as estrelas e se esqueceram da sua existência – o que é fácil suceder, no bulício do quotidiano.
A verdade é que acredito haver cada vez mais a tendência para não vermos as estrelas que possam eventualmente surgir no céu a dourar o nosso caminho (como referia o Rui Veloso), sob pena de cairmos no vazio, no buraco negro da falta de referências, ofuscados pelos néons da ditadura das aparências. É que as estrelas que outrora guiaram marinheiros pelos mares incógnitos do mundo, podem continuar a ser, tantas vezes, a centelha da esperança que importa manter acesa, pelos caminhos pedregosos que cruzamos em tantas noites das nossas vidas.
Dora Gago é professora
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