Abro as portas da memória e entro num dia de Março de 2002, uma página de calendário já desbotada, arrancada dos muros escorregadios do tempo. Estou na sala Mário Sambarino, na Faculdade de Humanidades da Universidade da República Oriental do Uruguai. Paredes altas, húmidas, uma breve janela lá acima, que a minha vista não alcança. A sala vazia, um cheiro húmido de início, de primeira aula. Uma jovem entra e inicia conversa, pergunta se também venho para a aula de Literatura Portuguesa. Respondo que sim, na verdade até sou a professora. Ela olha-me com espanto, a querer saber então porque estou ali àquelas horas? Os professores só costumam chegar pelo menos quinze minutos depois... Nesse momento, os meus passos já tinham percorrido algo das instalações um tanto degradadas, deixando um rasto irritante de «NHAC, NHAC», como se uma estranha cola envolvesse todo o chão enegrecido, grudando-me a ele – no fundo, soube-o depois, como se um antepassado do popular pega-monstros ali tivesse estado à minha espera desde todo o sempre, apenas para mostrar que existia, para exibir a sua raça.
Minutos depois, chegam mais alunos e a sala enche. Começam as apresentações. De súbito, a porta da sala abre-se, surgindo uma senhora franzina, curvada sobre uma bengala, de aspecto tão corroído pelo tempo que parece ter, à vontade, bem mais de duzentos anos. Abre a porta, entra, pára a meio da sala, olhando fixamente para mim. Eu que tinha sido enviada pelo Instituto Camões para leccionar português, na altura com conhecimento limitado de espanhol, deparo-me com a sua repentina fúria. Ergue aos céus a maciça bengala, apontando na minha direcção, enquanto berra: ¿PERO QUÉ IDIOMA RARO HABLA USTED? Balbucio timidamente o português que fui incumbida de ensinar por aquelas paragens. De repente, a minha aula adquire uma outra dimensão a escapar das margens do real, escorrendo por entre as paredes húmidas da sala, deslizando para fora pela exígua janela lá de cima. Há uma cascata de insultos a atropelarem-se, a escaparem ao meu entendimento. Não sei de que tempo nem de que mundo veio aquela personagem, mas sinto ainda a tensão do momento em que creio que serei desfeita, como uma mosca impertinente, por aquela bengala. Quando tudo parece perdido, ela respira fundo, sai da sala, batendo com a porta.
Embaraçados os alunos tentam explicar: ela teria sido Inspectora Geral do Ensino – talvez no século XIX quando o Uruguai se tornou independente, pensei eu – e, por vezes era acometida de certos episódios de demência que a faziam «assombrar» as aulas da Universidade da República. Uma personagem que poderia ter saído das páginas de Horácio Quiroga, de Felisberto Hérnandez, Júlio Cortazar, Garcia Márquez ou tantos outros. Neste momento é apenas a prova de que a fantasia, o fantástico, o que se ergue acima da realidade, da casca do quotidiano pode entrar sem licença, nas situações mais banais. Em inesperados momentos, podemos sempre deparar-nos com um qualquer fantasma adiado, a resgatar talvez um tempo perdido. A aula prossegue, alicerçada na sensação de que qualquer um de nós se pode converter numa visitante fora do seu espaço, do seu mundo, a revelar-nos um passado longínquo disfarçado de presente.
Dora Gago é professora
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