“Professora, quando eu casar com um rapaz, ele vai ser o quê aos meus pais?”. A pergunta surpreendeu-me, vinda de uma aluna daquela idade. E a minha surpresa residiu no facto de não me lembrar sequer de como aprendi isso, mas os graus de parentesco integraram o meu universo desde muito cedo. Embora vinda de uma família pequena, percebia como se relacionava, entre sogros, genros, noras, cunhados, cunhadas, também porque se falava, conversava-se, ouviam-se os adultos. Apercebi-me de que, para aquela turma de miúdos de doze anos, os graus de parentesco conhecidos se reduziam ao pai, mãe, quando muito irmão ou irmã, alguma avó ou avô e pouco mais. O resto resto ficava de fora, até porque se fala deles nas línguas estrangeiras, mas na materna, não. E aqui não deixo de evocar a minha breve aprendizagem do mandarim, em Macau e toda a complexidade de que se revestem os graus de parentesco neste idioma. É que há nomes distintos para cada um dos membros da família, descritiva das suas origens e caraterísticas. A título de exemplo: a irmã mais velha é jiějie, a mais nova mèimei, o avô paterno é zǔfù, o materno wài gōng e assim sucessivamente. Um aluno explicou-me que esta complexidade de designações seria útil para determinar depois a questão das heranças. Mas enfim, na nossa língua, é muito mais simples, o problema é, com efeito, outro. É que isto remete para uma ausência de referências, para uma deriva, um desligar de raízes, uma ausência de diálogo, de conversas à mesa ou ao serão. Isto evoca o isolamento em cada um vive (que deixou de ser uma questão mais frequente nas cidades e se globalizou), emigrando para as entranhas dos telemóveis, das redes sociais, das vidas de sonho ilusório das estrelas dos media, transplantado para uma era do vazio em estado puro. E, na verdade, a obra do filósofo francês Gilles Lipovetsky, intitulada A Era do Vazio, publicada pela primeira vez em 1983, assume, nos tempos que correm, profunda actualidade. Tal como nela se advoga, na Pós-modernidade, o narcisismo converte-se em ilusão e desencanto, assumindo-se o ato de «comunicar por comunicar» como a transfiguração desse profundo vazio contemporâneo, vivido sob o jugo da tirania do instante, da espectacularidade do quotidiano, da ditadura das aparências. E sobre estas e outras atuais reflectem, entre outros, também sabiamente o sociólogo Zygmunt Baumann e o filósofo Byung Chul Han, vozes que importa escutar pelo modo como analisam os fragmentos da nossa realidade circundante.

Se, como escreveu Tolstoi em Ana Karenina, “Todas as famílias felizes se parecem, mas as infelizes são-no, cada uma à sua maneira”, a verdade é que, independentemente da felicidade ou da infelicidade (e do seu teor provisório), assim como dos elementos que a integram, a família continua a ser o núcleo onde e de onde se nasce, se cresce, o primeiro mundo de cada indivíduo. Talvez por isso, sabê-la nomear, conhecer os fios que a unem, as linhas que a vão tecendo, reconstituindo, projectando no futuro, será sempre um modo de nos conhecermos, o ponto de partida onde são inaugurados os caminhos que a trilhar.

Dora Gago é professora

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