“A leitura é o milagre fecundo de uma comunicação no interior da solidão”
Marcel Proust, Sobre a Leitura, Trad. Miguel Serras Pereira, Ed. Antígona, 2020
Estou prisioneira nas garras do quotidiano como um insecto numa teia. Uma teia inflexível, transparente, onde é difícil balançar, não se movendo sequer para transmitir a ilusória sensação de liberdade. É através da leitura e da escrita que vou tentando ludibriar este estado que se prolongará não sei até quando.
Agora, aqui neste momento, o palco de liberdade é a sala de espera do hospital, em Évora. Estou sob o comando de uma voz e de um ecrã verde, de onde escorrem números de senhas e de gabinetes de atendimento.
Desenterro o livro de bolso adormecido no fundo da minha mala. Há sempre um a habitá-la, assíduo e paciente, ao contrário da garrafa de água, por vezes esquecida, na bancada da cozinha.
Leio as primeiras páginas de Neverness, edição de bolso, de Ana Teresa Pereira e sou transportada para Inglaterra, para um reino de infância e nevoeiro. Imediatamente evoco outros nevoeiros lidos e vividos, nomeadamente a mudança climática verificada na zona do Alentejo onde vivo, após a construção da barragem do Alqueva que incrementou fortemente as manhãs de nevoeirentas que antes rareavam. E também, claro, os nevoeiros de Macau, feitos de uma neblina tóxica que, sobretudo no Inverno, embrulhavam toda a realidade, deixando transparecer apenas formas pouco definidas. E recuo ainda a outros nevoeiros, aos da infância, dos mistérios, aos da literatura, da Mensagem de Fernando Pessoa: “Portugal, hoje és nevoeiro”. Mais actual do que nunca. A minha mente divaga como cavalo sem freio, galopando sem limites entre tempos e espaços. Sim, é isto que a leitura faz em nós: planta sementes, condensa ou expande o tempo, dilata o espaço e os horizontes, alarga-nos o universo. E sinto uma pena enorme de quem não tem capacidade de sentir isto, de quem não sabe o que é habitar uma página polvilhada de letras, como se fosse a cobertura de um bolo inesgotável (que além do mais, não nos engorda o corpo), saindo dela maior e mais rico. Lamento, sobretudo, a enorme dificuldade que há em transmitir esta necessidade, esta paixão aos alunos, aos mais jovens.
Acima de tudo, importa mostrar-lhes como a leitura nos afaga nos momentos de solidão, nos distrai no tédio de uma sala de espera num hospital, nos faz viajar para sítios que jamais visitaremos (ou que descobrimos renascidos se os chegarmos a visitar), nos faz viver milhares de vidas muito além da nossa. Acima de tudo, urgiria revelar-lhes um segredo: há uma arte que constrói mundos paralelos ao nosso, permitindo entender a realidade ou até fugir dela, enraizada naquilo que de mais profundo habita a natureza, a alma humana. Através dela, conhecemos mundos, vidas edificadas desde o início dos séculos, a cruzar culturas e civilizações, desvendando esculturas de nevoeiro. Liberta-nos dos mais diversos espaços de tédio, de confinamento, de aborrecimento, a começar e a acabar nas garras do quotidiano, nas salas de espera de consultórios, hospitais ... O seu nome é Literatura. E ler, como referiu Proust, “é acender um milagre profundo, em tempos de trevas, onde a luz nunca foi tão necessária”.
Dora Gago é professora
Crónica publicada em: