Preparo uma chávena de chá e bebo-o de pé. À janela da cozinha. Com vista para o mato.

Para lá do vidro, um chão coberto de rosmaninhos, azedas, tomilho, espargos selvagens, estevas exuberantes. Liláceas brancas desenham riscos verticais. Em primeiro plano, dois pinheiros albergam centenas de pássaros: rolas, pardais, melros, pegas-azuis, pintassilgos …

O dia amanheceu toldado por um nevoeiro intenso. Hoje não há voos. Nem chilreios. Nem pousares desconfiados. Arbustos, muro, parapeito. Vazios. Apenas uma tela a verde e cinza. Cinza-silêncio, cinza-infinito. Lembra-me a névoa que cobre a paisagem em «O monge junto ao mar», de Caspar David Friedrich. Sonolenta, a cadela repousa a um canto, encolhida. Uma pequena mancha negra, entediada, que olha demoradamente o horizonte despido, como o religioso no quadro do pintor alemão. Nem um pássaro. Nem uma lagartixa. Um tédio langoroso. O frio e a humidade a impedirem a primavera. Os bichos amalhados.

Há tempos, ocorreu-me encher as árvores do jardim de casas para pássaros. São tantos. E tão frágeis! É impossível não pensar na dureza do inverno. Nas penas ensopadas. No tiritar dos pequenos corpos. Nos vendavais que os derrubam das árvores. Na chuva e no vento que lhes destroem os ninhos. Por isso, venham de lá as casas de várias cores e feitios. De madeira. De palha. Bonitas. Seguras. Apetecíveis. E venham de lá o escadote e as horas passadas a pendurar estas moradias de luxo nos ramos e troncos do arvoredo. Telhados em bico, entradas redondinhas, pequenos poleiros salientes. A perfeição. O contentamento de saber que fiz algo por quem me dá tantos momentos de prazer à janela. Pensavam que não vos via? Que não me interessava? Estavam tão enganados. Eis a recompensa. Não são maravilhosas?

Já passaram quatro anos, desde que instalei a urbanização de luxo. Entretanto, mudei a disposição das casas, subi-as, desci-as, deixei-as mais protegidas pela folhagem, depois menos. Coloquei comida à entrada. Lá dentro. Nos ramos mais próximos. E, até hoje, nem um inquilino. Na verdade, nem um pretendente a inquilino. Os pássaros mantêm-se ao longe. Voam por ali. Enchem os papos de figos e nêsperas. Pousam para apanhar folhas e ervas secas. A cadela sempre à espreita, pronta para lhes espetar o dente. Descolagens apressadas. Carregam no bico estes materiais de construção e depositam-nos nos pinheiros-dormitório. Para lá do muro. Sempre para lá do muro. Nos subúrbios. Um vaivém contínuo. As casas vazias.

Intriga-me este não ficar. Esta ida e vinda permanente. A busca desnecessária de alimento. O trabalho meticuloso de construção de um ninho frágil, quando bastaria desfrutar do conforto do que lhes é oferecido. Sou levada a acreditar que estas criaturas podem não ser tão despojadas de filosofia quanto pensamos. Que podem não se limitar a nascer, viver e morrer. Quem sabe se, como nós, precisam de objetivos concretos, de um motivo para existirem entre o primeiro e o último suspiro... Por isso, desprezam as casas na árvore. Porque carecem de uma razão para continuar a voar, para chilrear, para disputarem a fruta connosco. Ou porque temem a solidão. Talvez precisem da segurança de estar entre os seus. De os ouvir. De sentir o seu respirar e o seu calor. Ou pode ser que o mato seja casa suficiente para si. Que o teto e as paredes os encurralem e os sufoquem.

O piar insistente de uma gaivota traz-me de volta ao presente. Notícias do mar bravio. Pouso a caneca. Tento retomar o trabalho, mas também eu me recolho. Enrolo-me sobre mim mesma no sofá com um olhar mole na direção do meu condomínio deserto.

Sílvia Quinteiro é professora

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