A leitura do último livro de Byung Chul Han, A crise da Narração, consubstanciou o que sinto como docente, regressada ao ensino, após mais de uma década a lecionar no ensino superior no estrangeiro, mais especificamente na Universidade de Macau. Acima de tudo, noto nos alunos uma autêntica incapacidade de ouvir, de escutar os outros, quer sejam colegas, professores ou até, imagino, pais. Nesta esteira, é o próprio Chul-Han que afirma o facto de estarmos a perder a capacidade de escutar com atenção e de narrar. E são precisamente as histórias que fomentam a empatia, estabelecendo vínculos, entretecendo os fios entre os membros de uma comunidade. Por conseguinte, a falta de empatia é gritante, conduzindo constantemente a situações de violência, quer nas escolas, quer na comunidade em geral – basta estarmos atentos às notícias.

Esta incapacidade de escutar, aliada a uma necessidade de falar, de se fazer ouvir, mesmo que seja para dizer disparates, frases desarticuladas reveladoras de uma incapacidade de argumentação, agrava-se de geração para geração. Se os mais velhos ainda são capazes de seguir séries, filmes, os mais novos ficam-se pelos clips, pelos vídeos curtos, pelos tik toks, visto que ouvir ler uma história, a menos que seja brevíssima, tornou-se um esforço hercúleo, pois o cérebro está talhado para o imediatismo da imagem, para o deslizar de um dedo instaurador do único reino conhecido, que é o virtual – sobre a problemática da incapacidade de concentração, importa lermos A fábrica de cretinos digitais. Os perigos dos ecrãs para os nossos filhos, de Michel Desmurget.

Esta exposição e vício dos ecrãs desde tenra idade conduz a um completo exílio no universo digital, conducente ao corte de amarras com o real, com o mundo circundante. Por isso, as competências sociais diminuem, o convívio restringe-se, o narcisismo impera, porque o meu umbigo é maior do que o teu. A ideia de que a vida é um imenso tik tok, alimentado por influencers ocos, de vidas vazias, feitas de show off, tecidas na matéria volátil da aparência, prolifera.

Convertemo-nos em meros «caçadores de informação» (expressão também de Byung Chul Han), que nos assola, sem ser digerida, nem filtrada. Por isso, as notícias falsas, ao serviço de certas ideologias, manipulam, cada vez mais facilmente, conduzindo a indignações para as quais nem sequer se busca a justificação, o argumento sólido onde se enraízam.

No meio disto tudo, o papel da escola (cujo modelo já se revela obsoleto e desadequado aos desafios crescentes da sociedade) é limitado, até porque está algemada por uma insana carga burocrática, por regras que compactuam com todo este vazio, por metas de aprendizagem mirabolantes. Por conseguinte, é apontada ao professor a culpa de todo o insucesso que possa existir, já que deixou de se dever à falta de trabalho, de estudo, de concentração dos alunos. Não, tudo é fruto da incompetência do docente, cujo papel é ser um malabarista do sucesso, sempre a balançar na corda bamba, preenchendo milhentos papéis, adaptando os instrumentos de avaliação até à exaustão para que o êxito dos alunos desponte, como erva daninha, entre as pedras da calçada.

Assim, na ausência da escuta, da leitura, na incapacidade de narrar, encontramo-nos cada vez mais prisioneiros da contingência temporal, afastados dos alicerces construtores da identidade, da memória, sem tempo, cativos da alucinação do quotidiano, resolvendo os nossos problemas. Todavia, viver é mais do que isso, pois: “quem se limita a resolver problemas não tem futuro. A narração é a única que abre o futuro ao permitir-nos albergar a esperança” (Byung Chul Han). Por isso, perante o desencanto da casualidade, a tirania do vazio, importa escutar, ler, narrar, reinventar os dias, resgatar a magia e a esperança.

Dora Gago é professora

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