Cresci no seio de uma família jovem, enérgica e animada, na qual a monotonia nunca teve oportunidade de se instalar. A receita: muito humor e animadas viagens de carro. Aos fins-de-semana, acordava-se cedo ao som de um: “⎼ Levantem-se depressa. Vamos a…”. E lá íamos nós, Portugal a fora, descobrir o país palmo a palmo. Havia sempre alguma coisa por ver: um monumento, uma praia, uma aldeia embutida na serra, um museu… Fazíamos longos quilómetros para ir comer a um restaurante recomendado por alguém ou visitar um amigo de longa data.

Almofadas, manta, bonecas, livros, papel e canetas para jogar ao STOP. Mas o mais importante, o que realmente tornava a viagem especial, era a música. A que ouvíamos, mas, sobretudo a que cantávamos. Os pais davam o tom e as crianças acompanhavam. Entoávamos a plenos pulmões música tradicional portuguesa, canções de intervenção, os sucessos do Festival da Canção ou da Eurovisão, canções que evocavam as paisagens atravessadas... Ouço-nos. O carro em andamento, janelas abertas. O cabelo da mãe, negro, brilhante, imperturbável sob uma camada de laca perfumada. Os nossos a esvoaçar. Grândola Vila Morena, Lisboa Menina e Moça, Quem passa por Alcobaça. Mais uma hora e chegará a vez de Coimbra é uma lição.

O gosto pela música era partilhado pelo resto da família. No carro do tio, frequentador habitual dos bares e discotecas de Albufeira, a música era outra: Rolling Stones, Clash, Queen, Ramones, Doors... Rádio no máximo. Ele acompanhava os vocalistas. Eu também, mas numa versão da letra que, tal como a língua, era só minha.

As reuniões de família, por sua vez, eram verdadeiros concertos. Os avós, entusiastas das charolas, do cantar à desgarrada, do fado, das canções dos filmes dos anos 50 e das «modas» que faziam furor no Parque Mayer, dominavam nestes momentos. A indispensável gaita de beiços sempre presente. Enquanto um cantava o outro tocava. Convívios inesquecíveis.

Não me lembro de haver silêncios. Nem mesmo a trabalhar. Pais, avós, tios. Na horta, em casa, no carro… Um entusiasmo musical capaz de envergonhar a família von Trapp.

Não se confunda, porém, entusiasmo com talento. Se formássemos uma banda, seríamos seguramente Os canta mal e toca pior. Tínhamos plena consciência disso, mas era um pormenor. Aos poucos, as canções desses tempos transformaram-se em memórias de uma forma melodiosa de viver. Tentei replicá-la: cantar no carro, em casa, ao deitar os filhos, até com os alunos, coitados. E apercebi-me hoje de que falhei nessa missão. Sem dar por isso, a vida foi-se tornando cada vez mais silenciosa. Já canto pouco. Ou desafino pouco, como preferirem. Ninguém canta cá em casa. Ouve-se muita música, mas não se canta… Percebi o quanto este silêncio faz eco. Que não cantar, não expressar a felicidade dessa forma, é, de algum modo, ser menos feliz. E foi nesse momento que, não encontrando uma boa razão para que isto aconteça, decidi recuperar a boa tradição familiar. Este desejo assolou-me no duche. Que oportunidade melhor para libertar o rouxinol silenciado. Deixei-o de imediato voar ao som de Murder on the dancefloor. A acompanhar, uma versão minimalista da coreografia de Barry Keoghan, em Saltburn. Feliz. Leve. Liberta. Voei até à infância, até à família, até aos lugares das viagens, dos longos serões, ao interior dos carros-sala de concerto que nos levavam em digressão. Voei e aterrei. Em cheio no fundo da banheira, onde me estatelei e arranjei um belo galo para fazer companhia ao rouxinol. Temos dueto!

Sílvia Quinteiro é professora

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