Chegado o momento de decidir qual a área a seguir no 9.º ano, optei por Desporto. O motivo dessa escolha não podia ser mais próprio da idade. Era sabido que todos os rapazes giros do Liceu estavam nessas turmas. E como as escolhas bem fundamentadas tendem a dar bons resultados, foi um ano lastimoso. Eu não tinha a mínima vocação. A turma era terrível. Os professores andavam ali em sofrimento. E os rapazes? Coitaditos… como as raparigas. Pernas e braços assimétricos, acne, vozes de cana rachada. Acontece que há realmente males que vêm por bem e, no ano seguinte, a escolha teve outros fundamentos. Sempre gostei de ler. Gostava de Inglês. Queria muito aprender Alemão. E, ainda que o objetivo fosse conseguir ler a Bravo, sempre era melhor do que o que me levou ao Desporto. Juntando a isto uma relação tumultuosa com os números, a matrícula na área das Letras estava decidida.

Uma mudança radical. Alunos muito empenhados. Professores motivados. Guardo de todos boas memórias. Mas há sempre alguém que sobressai mesmo entre os excelentes. No meu caso, destacou-se uma professora de Português. Pequenina. Os dentes da frente ligeiramente encavalitados, a formar um V. Cabelo pintado de um castanho discreto, como a saia direita, os camiseiros abotoados até ao queixo e os casacos de malha que usava quase como uma farda. E não lhe olhassem ao tamanho nem à idade. Estava à beira da aposentação e não era para brincadeiras. Surgia no corredor e ficávamos de imediato em sentido. Entrávamos ordeiramente na sala. A única em que havia lugares marcados. Por ordem alfabética. A mesma que usava para nos chamar a ler, um a um, em todas as aulas. Uma disciplina militar. Tinha expressões faciais inesquecíveis. Quando uma resposta a impressionava, dirigia-nos um sorriso leve, sereno. De quem sabe que cumpriu a sua missão e se ilumina por dentro. Já quando alguém se procurava evidenciar, não continha um sorriso de desdém. Lançava-o do alto do estrado. Fulminante. Quase tão fatal quanto o único comentário que lhe suscitava o nosso desfile de roupinhas trazidas dos Porfírios: – Isso é moda?

As aulas não podiam ser mais tradicionais. Sem fogo-de-artifício. Sem «modernices». Apenas uma professora. Uma obra. Os alunos. O tempo corria quando nos levava pelos textos, pelas histórias, pelas relações que estabelecia entre palavras com séculos e as nossas vidas.

Pouco se distraía da matéria. E, talvez também por isso, os raros apartes são memoráveis. Contava-nos que na Serra da Estrela, onde tinha nascido e crescido, a missa era dada em Latim. Assim, as pessoas sentiam-se mais pequenas e encolhiam-se com medo, explicava. Dizia não entender quem cumpria promessas e se martirizava em nome de qualquer religião. Que todos nascíamos com uma cruz pesada para carregar, não era necessário mais. Contava-nos que quando era estudante se ensinava literatura dividindo orações. Segundo ela, a intenção era desviar a atenção do significado dos textos. Evitar que os alunos pensassem. Quanto mais ignorante o povo, melhor se espezinha. E afirmava de olhos bem abertos: ­⎼ Eu quero que pensem! Que pensem! Estão a ouvir?

Como ficaria dececionada a professora se voltasse hoje. Se visse o regresso da autópsia a muitas salas de aula. A literatura em cima da mesa, gelada, a ser esventrada apenas para se concluir que ali jaz uma “oração subordinada adjetiva relativa restritiva” ou uma “oração coordenada disjuntiva sindética”. E os jovens que deviam ser ensinados a pensar, a ter prazer na leitura, a descobrir porque é que aqueles textos lhes interessam, ocupados a dissecar o corpo morto, estranho e repugnante. A colocar amostras na lamela. A observar ao microscópio o pormenorzinho, enquanto os cangalheiros aguardam, encandeados pela luz do retroprojetor que mostrará as soluções ditadas por uma qualquer editora.

E vem-me cada vez mais à cabeça a frase com que a professora se despedia das suas turmas no final do 11.º ano: ⎼ Cada um de vocês vai seguir um caminho. Seja a lavar pratos, seja numa sala de operações, tenham brio. Sejam os melhores.

Sílvia Quinteiro é professora

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