Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Hilda Hilst

Fala-se muito do amor e quase nada do desejo. Apesar de sermos, sobretudo, desejantes, pois é o desejo que nos move. É a ausência daquilo que queremos, que nos obriga a continuar, a tentar preencher os vazios, a encontrar, se possível, o (quase) inalcançável objeto do desejo. Desejo que, na psicanálise, é considerado uma espécie de Grande Outro. Da ausência/presença mais fundamental em nós. Daquela que nos constitui – mostrando que o outro sou eu mesmo e que também é qualquer coisa que nos escapa. Sócrates, no Banquete, define o amor como uma falta, um corpo descarnado que procura a carne viva que lhe recubra os ossos, que lhe traga sangue para circular nas veias e bombear o coração. O amor e o desejo confundem-se na literatura, e na vida. Falar de amor é mais fácil, apesar de sabermos que nenhuma palavra, sentença, parágrafo ou texto consiga definir a sensação de quem ama. Falamos do amor por metáforas, como uma língua que circunda o gelado e não consegue abarcá-lo de vez. Apenas sentir o doce, o frio, o sabor desejado e escolhido. Como uma onda que avança sobre a areia, mas não consegue devorá-la toda, apenas lambê-la. (A não ser durante uma tempestade, que de tão intensa, devora a tudo e a todos, e arrasta-nos pelo caminho). Falamos de amor na poesia, na prosa, nos filmes. Falamos de amor, muitas vezes, quando queríamos falar de desejo – daquilo que é mais primitivo e cru, daquilo que nos move, mas do qual temos receio. Daquilo que nos devora. O desejo que existe pelo e no objeto amado, ou pelo objeto, amado ou não, que nos desperta a vontade mais intensa, que nos faz delirar, como se estivéssemos com uma febre malsã. Como se o controlo, que ainda nos torna civilizados, fosse desligado e a voragem do corpo do outro tomasse conta do nosso corpo, em busca de uma fusão. O desejo não é civilizado, não se convida para passeios ao luar ou para um jantar romântico. Às vezes o desejo parte, e muita gente pensa que com ele parte também o amor. Não sabem que o amor é o que nos faz ficar. É o que nos faz, teimosamente, resistir ano após ano. E durante este tempo, muitas vezes, o desejo reaparece, como se fosse um primeiro encontro. É preciso ter alguma paciência. O problema é que o desejo é desvairado. E corre, sem rédeas. Nem sempre conseguimos alcançá-lo.

Mirian Tavares é professora

Crónica publicada em:

Foto: Vasco Célio