Amanhece. Sobre a mesa da casa de jantar, uma toalha de renda desenha penas de pavão. A mesa foi posta de véspera. Medronho. Folar. Bolo de laranja. Figos secos. Pratos antigos e cálices de vidro muito fino. Ao centro, uma jarra vazia aguarda que a encha de maios e calças de cuco. É, por isso, hora de ir até ao mato colher as flores. A família não tarda a despertar e há que atacar o Maio de imediato.

Caminho um pouco por entre os pinheiros e encontro uma mulher que traz um molho na mão.

– Tem chovido bem. Está tudo verde. Há muitos anos que não via tantos maios. Olhe ali. Maios e calças de cuco com fartura – diz.

Também eu estou espantada com tamanha abundância de flores. Ficamos à conversa. Talvez já não haja tanta gente a apanhá-los. Talvez o hábito de pôr a mesa para atacar o Maio se esteja a perder. Rimos do facto de ambas termos bebido um copo de medronho mal acordámos. Não fosse o Maio entrar… Há que jogar pelo seguro.

– Tenho 94 anos. Se é para afastar o bicho, tanto vale o comprimido para o colesterol como um copinho de medronho. A Fátima é que já não vou, que fico cansada. Mas ainda cá quero andar mais uns dias – afirma, divertida.

Pergunto-lhe se conhece as rolhas de maio. Se se faziam na sua infância. Nunca ouviu falar. «Em moça», medronho e figos secos. Folar, mais tarde. Nos bons tempos. Em criança, nada. Explica-me que a tradição só existia para os ricos. A vida foi melhorando, mas até casar não se lembra de tal coisa. Os figos eram a refeição que levavam para o trabalho. Não se podiam desperdiçar. E, enquanto vamos caminhando pelo mato e compondo os nossos molhos, entra por uma fabulosa viagem no tempo. Recorda sem qualquer esforço outros Dias de Maio. A comparação surge com naturalidade: o antigamente e o agora. Percebo que, quando se tem 94 anos, o agora pode ter 50.

– Naquele tempo, era tudo uma barrigada de fome. Esses «moce pequenes» que andam pr’aí a dizer que antigamente é que era bom, era dar-lhes com um pano encharcado nas ventas – diz com rispidez. O ar de brincadeira e a leveza da conversa desaparecem. Mostra-se incomodada. Zangada. Só volta a sorrir quando nos despedimos.

Regresso a casa. Entro de ramo na mão. Acerto os caules e encho a jarra. Um volumoso molho de maios lilases salpicado pelo rosa vivo das calças de cuco. Ficou lindo. Sinto uma felicidade quase pueril. A mesa está finalmente pronta. Iniciamos o ataque com um brinde. Narizes franzidos. Os rapazes, ainda ensonados, fazem caretas. Engolir medronho em jejum não é para fracos. Como todos os anos, eu explico o que está na mesa. Lembro como se fazia em casa dos meus bisavós, avós e pais. Não o digo abertamente. Mas, o que realmente pretendo é que estes momentos fiquem gravados na memória dos meus filhos. Que registem todos os pormenores e não deixem que se perca o ritual algarvio.

A família dispersa-se pela casa e eu sento-me, então, a escrever esta crónica. Hesito em usar a expressão da senhora a propósito dos que têm tantas saudades de outros tempos. Dou voltas ao texto. Procuro alternativas mais poéticas. Menos gráficas. Sinónimos. Eufemismos. E decido que ficará exatamente como me foi dito.

Pela minha parte, rabisco este texto que poderão sempre imprimir e encharcar, dando-lhe depois bom uso, em defesa deste e dos Maios que virão.

Sílvia Quinteiro é professora

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