“O padrão do seu ritmo diário de movimento foi alterado”, diz-me – por estas ou semelhantes palavras – o meu telefone. É esperto, o meu telefone, e sinto-o como se só o meu falasse comigo. É uma das consequências da esperteza destes aparelhos, fazer com que uma pessoa se sinta o centro do mundo: se um mecanismo de ligação ao mundo se dirige a mim, revelando-me segredos sobre o meu padrão diário de movimento, denunciando saber de mim mais do que eu própria sei, é porque tem estado a reparar em mim, porque me tem dado atenção; logo, sou importante para este meu aparelho que me liga ao mundo; logo, sou importante para o mundo. Enche-se-me de ar o peito orgulhoso, empurra para trás as omoplatas e faz-me endireitar os ombros. Que me importa o resto do mundo, se me vejo no seu centro, observada por uma entidade «esperta» que só a mim dedica atenção, que se me dirige como se mais ninguém existisse?

(As dúvidas, porém, importunam-me: que ritmo? Eu tenho um ritmo? Tenho um ritmo diário? Como diachos se alterou aquilo que não sabia que existia? O que foi que fiz agora? «Alterou-se» como? Quem o alterou – qual o agente daquela passiva? Alterou-se para meu bem? Como o mantenho benéfico? Ou terá sido em meu prejuízo? O que me irá acontecer?).


Olhar-me como se eu fosse o centro do mundo tem o efeito imediato de fazer desaparecer o resto do que deveria ser densidade à minha volta (a definir, precisamente, um núcleo); Narciso nasce quando – ou «e» – o mundo desaparece. A meio de ler um artigo de jornal, crónica do El País no rescaldo da “decisión de Sánchez”, acende-se uma luzinha no telefone (insisto em chamar «telefone» a este aparato-coleira) que fala só para mim e somem-se Espanha e a retórica de um discurso político de pouco mais de oito minutos; desaparecem, como eles, Gaza e Ucrânia, a impunidade de um antigo funcionário da P.I.D.E., a volubilidade de uma Presidente da Comissão Europeia. Alterou-se o ritmo do meu movimento diário e nada mais me importa senão fazer a análise das horas mais recentes – não do país, não da Península, não da Europa nem dos continentes reaproximados pelos sismos da marcial violência –, mas das minhas pernas sobre as ruas, do meu corpo sobre as pedras da calçada; nada supera a comparação entre o tempo que passei sentada e o tempo do meu corpo em movimento vertical.

Por sorte, reaparece o papel do jornal que lia. Ouço o rumor das folhas debaixo da manga da blusa e as páginas voltam a assomar, reconfiguradas enquanto mundo fora de mim. Onde é que eu ia? Ah, sim – «Todos idiotas», texto assinado por Azahara Palomeque (“Que nomes curiosos”, desvio-me outra vez), cujo começo me faz estremecer: “Para poder ler com metade da concentração que tinha aos meus 10 anos, tenho de levar o telemóvel para fora da sala, colocá-lo relativamente longe como sempre o tenho, com o volume desligado, e, mesmo assim, sinto que o pensamento fragmentado me persegue e escapa por entre as páginas, como choque elétricos de que tentasse proteger-me com uma manta”.

Tenho o telemóvel ao lado – nada a fazer quando a luz se volta a acender e os olhos se desviam: “Reserve uns momentos para escrever sobre a sua experiência em Universidade Rey Juan Carlos”.

Ana Isabel Soares é professora

Crónica publicada em:

Foto: Vasco Célio