Breve homenagem a Nuno Júdice (Portimão, Mexilhoeira Grande, 29 de abril de 1949 – Lisboa, 17 de março de 2024)

“(…) E a vida que pulsa por entre advérbios e adjectivos esfuma-se depressa,
quando procuramos seguir a linha do verso, o que fica? Perguntas-me
Um encontro no canto da memória.
Risos, lágrimas, o terno murmúrio da noite.
Nada, e tudo”.
Nuno Júdice, o Estado dos Campos, Ed. Dom Quixote, 2003


Será talvez um início de Outubro de 1997 ou 1998, numa tarde de quarta feira (essa a única certeza) sem dúvida, porque era o dia das aulas de mestrado.

Nas escadas da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, uma jovem sentou-se para chorar, num gesto de último desespero. Levantou-se antes das cinco da madrugada, depois de ter dado aulas numa escola secundária, no Alentejo profundo, até à meia-noite. Apanhou dois autocarros para conseguir assistir às aulas do mestrado em Lisboa e inscrever-se no último seminário, pois o prazo termina nesse dia. Inexplicavelmente, a secretária do departamento recusou-se a aceitar a inscrição. Tinha de fechar mais cedo, havia um erro qualquer no documento que não se podia corrigir. A jovem tentou argumentar, explicar a situação, sem sucesso. Ficaria sem hipótese de concluir a parte curricular nesse ano e talvez o melhor fosse desistir depois de tantos sacrifícios. Por isso, sentou-se nas escadas, converteu em lágrimas o cansaço, a incerteza, a frustração. De repente, um senhor desconhecido, moreno, discreto, aproxima-se. Pergunta se precisa de alguma coisa. Ela explica a situação, sem qualquer esperança. Ele diz-lhe que o acompanhe que tentará resolver a situação. Chegam ao departamento e a secretária desfaz-se em desculpas. Afinal, foi um equívoco. A inscrição pode ser aceite naquele mesmo momento, sem qualquer problema.

Incrédula, a jovem agradece muito ao seu «anjo salvador», a quem por timidez não pergunta sequer o nome, mas percebeu que é Professor, ali na Universidade. Só tempo depois o reconhece, na capa de um livro de poesia. Este ainda era o tempo em que o rosto de um poeta ainda se ia desenhando pelos versos, pela palavra, um tempo longe do mediatismo da internet e das redes sociais que vão convertendo poetas e escritores numa espécie de Pop Stars.

Agora, em tempo de aniversário, perante a dor e a consternação do esfumar da vida, fica a profunda gratidão no canto da memória, pelo gesto generoso, pelo profundo humanismo, pela beleza que habita os inúmeros versos onde a vida pulsa e pulsará para sempre entre advérbios, adjectivos, risos e lágrimas. Muito obrigada, Nuno Júdice!

Dora Gago é professora

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