AVISO: CONTÉM SPOILERS.

Uma das melhores séries que já vi, de muitas que tenho visto, chama-se Boston Legal (2006-2009). Tento perceber o que me faz gostar de uma série e, sim, a escrita (os diálogos) é importante – mas a condição comum àquelas que se me fazem inesquecíveis é a grande qualidade de quem as interpreta. Boston Legal tinha à frente uma dupla de atores (James Spader e William Shatner) que me cativaram desde o início (porque os conhecia de outras séries e filmes, ou só porque sim) e que criaram duas das minhas personagens favoritas, Alan Shore e Denny Crane, respetivamente. Meredith Eaton, que se estreou na série, fazia a implacável Bethany Horowitz; e Candice Bergen a firme sedutora Shirley Schmidt, disputada por Shore e por Crane, cujo nome, languidamente repetido pelos dois (mas sobretudo por Denny Crane) me deu grandes momentos de comédia. Um outro ator que integra essa galeria de memoráveis é Christian Clemenson, que faz um advogado (Jerry Espenson) com síndrome de Asperger. O meu coração pende sempre para Crane e Shore, mas o Espenson de Clemenson é uma personagem absolutamente irresistível.


Chegar ao final de uma série como Boston Legal teve em mim efeito semelhante ao final da leitura de um romance de Machado de Assis – orfandade total, desespero, sintomas de dependência, ira profunda contra os criadores (escritores, cenógrafos, figurinistas, realizadores, o cosmos inteiro de gente que faz nascer estas histórias) que se divertem a fazer outras coisas, ou a morrer, em vez de entregar eternamente, para o meu desfrute infinito, mais páginas e páginas da maravilha narrativa com que me conquistaram. Onde afoga uma órfã de séries as suas mágoas? Onde tenta apaziguar o desgosto? Uma das maneiras de o fazer é procurar onde andam os atores – como se percorresse no magma de um estranho além em busca de personagens defuntas. De vez em quando, salta um nome – e saltou-me o nome de Christian Clemenson. Um papel secundário, poucos minutos, contados nos oito episódios de uma «mini-série», e lá estava eu, a matar um bocadinho a saudade da personagem numa outra encarnação daquele ator. A Man in Full (2024) tem a protagonizá-la um outro gigante que dorme nos meus sonhos desde que, em 1985, foi Tom Baxter e saiu do ecrã de A Rosa Púrpura do Cairo para namorar uma ingénua espectadora. Tem Diane Lane, Anthony Heald, ou Lucy Liu. Mas tem também Clemenson, o Jerry «Mãozinhas» da minha saudade. Foi assim que me fisgou.

Mal sabia eu que me daria, A Man in Full, mais matéria articulatória, genulógica temática com que me entreter. Charlie Croker, o protagonista, é um milionário americano à beira da bancarrota, cuja riqueza, nascida do negócio do imobiliário tanto quanto da sua persistência e arrogância (que o advogado-conselheiro Stroock – Clemenson – procura matizar com alguma consciência ética). A idade de Croker não é amiga e, apesar da sua constituição desportiva, a dada altura o milionário-prestes-a-deixar-de-o-ser convence o médico a substituir um joelho falível por um mecanismo biónico com todo o apelo das novidades tecnológicas. A decadência de Croker é acompanhada pela tentativa de se ajustar ao novo joelho, que funciona, parece, demasiado bem, mas que, acima de tudo, é simultaneamente uma espécie de joelho de Aquiles e de joelho de Tróia: os banqueiros que querem apropriar-se das dívidas de Croker fazem-no ver que, detendo os seus bens adquiridos, são igualmente proprietários do joelho biónico instalado no corpo dele. Bem entendido, o joelho está implantado no corpo de Croker – e não nos deles. Ainda assim, maldito seja, depois de o pobre milionário cair morto e de o resto do seu corpo não dar mais de si, a câmara afasta-se no plano derradeiro, como se acompanhasse a elevação do espírito de Croker, para deixar ver no plano terreno uma perna, agora autonomizada, em espasmos elétricos que são como gargalhadas abafadas.

(O banqueiro Harry Zale – Bill Camp – explica a Charlie Croker que detém a propriedade do seu joelho biónico).


Ana Isabel Soares é professora

Crónica publicada em:

Foto: Vasco Célio