Dois elefantes ao longe, derramando o peso dos seus passos dolentes no pó do caminho, ao encontro da noite a descer também devagar a sua cortina. Estamos no Camboja, em Siem Reap, no meio do nada, com um tuk tuk avariado. Também nós caminhamos, indecisas, emaranhadas na teia do receio, como insectos capturados. O condutor vai arrastando o tuk tuk, à mão, pela nesga de asfalto esburacado. Não sabemos o que aconteceu, apenas que houve um último solavanco, depois a paragem. Falta de combustível? Avaria? O inglês do rapaz não é suficiente para nenhum esclarecimento. Lemos-lhe a ansiedade, a incerteza, aninhadas num meio sorriso no rosto magro, moreno.
Terminámos um dos circuitos dos templos. Tenho a alma mobilada pelas ruínas de Angkor Vat, mandado construir pelo rei Suryavarman II, no início do século XII, como templo central e capital do reino, inicialmente hindu, depois budista, expoente máximo do estilo clássico da arquitectura Khmer. Durante o seu tempo de esplendor, o Angkor Vat foi considerado a maior estrutura religiosa edificada, um dos tesouros arqueológicos mais relevantes do mundo. Supõe-se que terá albergado, entre as suas paredes, vários deuses e cerca de vinte mil pessoas. Cada uma das suas pedras fala. No entanto, o calor húmido tolda-nos a mente e os ouvidos. Sou apenas mais um insecto na vaga nuvem de turistas que por ele volteja, surda às palavras das pedras, às vidas de homens e deuses nelas esculpidas, aos segredos que jazem entre as árvores da floresta. Nunca nos meus mais atrevidos sonhos pensei aqui chegar, quando o templo me foi apresentado pela mão de Pierre Loti, pseudónimo do escritor francês e oficial da marinha Louis Marie Julien Viaud (1850-1923), cuja obra trabalhei nos seminários e na tese de mestrado – na altura, considerei-o enfadonho. Compreendo agora que não tinha ainda sido tatuada por esse espírito da viagem, a marcar como ferro em brasa certas personalidades nómadas. Nesse tempo, faltava-me experiência para o poder entender mais profundamente, estando longe de imaginar o que o futuro me reservaria. Pelo contrário, Pierre Loti, na obra póstuma intitulada Un pelérin d’Angkor, afirma ter pressentido todos os acontecimentos da sua vida desde os primeiros anos da infância, destacando entre eles, o aparecimento do templo de Angkor (visitado posteriormente em 1901), que lhe surgiu, primeiramente, numa imagem enviada pelo irmão mais velho, oficial de marinha. E vou pensando nos segredos das pedras, em Loti, mas também num seu antecessor por estas paragens, o primeiro homem branco a revelar as ruínas de Angkor ao Ocidente, o naturalista e explorador francês Henri Mouhot (1826-1861). Segundo refere Ruth Toledano, numa reportagem intitulada «Camboya, templos de esperanza», publicada no Jornal El País a 23 de Março de 2008, Mouhot, na sua insaciável sede de conhecer, de desbravar novos horizontes, ter-se-ia deparado com o templo quando perseguia uma mariposa, já talvez febril, doente.
Os pés doem, recado do corpo a relembrar que existe, além dos devaneios da mente a tentarem espantar o medo. A noite desce o iminente cortinado de estrelas. Esperamos, suspensas no vazio, pelo condutor que desapareceu no interior de uma das raras barracas de lata junto à estrada. Os elefantes desapareceram, nenhuma mariposa surgiu para nos apontar qualquer direcção, nem sequer um pirilampo. Sentimos os minutos agigantarem-se com a densidade de horas.
De repente, a salvação ecoa no ronco do tuk tuk, cujo farol rasga a bainha da escuridão. Subimos, suspiramos de alívio, abalamos, num solavanco libertador.
Chegando à cidade, convidamos o motorista para jantar connosco num restaurante a caminho do hotel. Ele aceita no seu sorriso tímido, o mesmo com que camuflou o pânico, horas antes. Estamos os três sentados à mesma mesa, mas a reacção dos empregados é estranha, quase se recusam a servi-lo, como se ao juntar-se com turistas violasse alguma lei, como se estivesse num território interdito, a trair o seu estatuto de residente, a sua cultura, nessa mistura com o «Outro» que somos nós. Apesar disso, os três pratos de noodles chegam.
E dou por mim a pensar no sofrimento de todo aquele povo sob o jugo do Khmer Vermelho, liderado por Pol Pot, entre 1975 e 1979, conducente à morte de 1,5 milhões de pessoas. As tiranias, a ganância, a ambição a gravarem o seu lastro de sangue sempre, ao longo do tempo, um pouco por todo o planeta, ontem como hoje. O Mal, como mancha indelével esculpida transversalmente na pele da Humanidade da qual somos parte. Tal como Mouhot, imagino uma mariposa, símbolo de uma metamorfose universal que, além de todas as guerras entre homens e deuses nos possa conduzir a uma mesa única.
Dora Gago é professora
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