Há anos, tornou-se popular uma frase pronunciada por uma «socialite» que revelava uma brilhante constatação: “estar vivo é o contrário de estar morto”. Mas será isto mesmo assim?

Passo a explicar. Recentemente, fui convidada para ir a uma escola secundária falar com alunos sobre os meus livros. Na última sessão, já a tarde ia avançada, entrei na sala um pouco mais cedo e já lá estavam alguns alunos. Uma dessas jovens, de repente, olhou para mim, arregalou os olhos e exclamou com ar de terror: “Ohhhh! Mas ela está viva!!!”. O espanto e o choque foram de tal ordem, que eu própria fiquei aterrorizada por estar viva, sem saber muito bem que crime estaria a cometer, a sentir-me uma verdadeira Lázara recauchutada, fugida do túmulo à socapa, sem pedir licença a ninguém. Emergia ali aquele estereótipo de que os escritores são gente morta, defunta, empoeirada, coberta de pó, feita em cinza que de vez em quando se escapam dos sarcófagos, originando uns filmes de terror, do género de «o regresso dos zombies». E depois, se até tinha lido a minha biografia seria caso para perguntar: o que ainda anda cá a fazer uma criatura nascida em 1972? Ou será 1872? Pouca diferença faz, pois são séculos passados, eras jurássicas, distantes deste nosso alucinante século XXI. Nisto das literaturas, mais cem, menos cem, vem a dar no mesmo, não anda aí ainda o Frei Luís de Sousa, do Garrett, junto com outros, como é o caso do Camões? E parece que não usam instagram, nem tiktok, nem nada disso…

Contudo, esta história também tem o seu reverso, pois se há vivos que era suposto estarem mortos, também há mortos que estão inteiramente vivos.

Anos atrás, foi, à escola onde eu lecionava na altura, uma colega, especialista em Florbela Espanca, para dar uma palestra a alunos do ensino secundário. No final, uma aluna visivelmente emocionada vai falar com a professora de português para lhe explicar a razão da sua emoção: “professora, estou tão feliz! É a primeira vez que vejo assim uma escritora ao vivo, nunca pensei! Gostei tanto de conhecer pessoalmente a Florbela Espanca! É tão simpática, falou tão bem!”.

Todavia, também senti bem viva a presença física de Florbela, ainda não há muito tempo, quando a propósito do poema musicado «ser poeta», perguntei a alunos do sétimo ano se conheciam Florbela Espanca e a resposta foi imediata: “sim, é professora de inglês aqui na nossa escola.”. Claro que se tratava de outra Florbela, com um apelido também ligeiramente semelhante.

De uma forma ou de outra, que importa é que Florbela continua viva. Neste contexto, saliento o extraordinário trabalho dos professores e investigadores brasileiros Maria Lúcia Dal Farra, Jonas Leite, Fábio Mário da Silva, que dirigiram e coordenaram o Dicionário de Florbela Espanca, obra notável e tão necessária, publicada no Brasil e em Portugal, cujo lançamento decorreu há uns meses na Universidade de Évora.

Em suma, mesmo a flutuar num mar de equívocos, e além de todas as escritoras zombies, alegra saber e celebrar o facto de Florbela permanecer entre nós, com a sua poesia, o seu caminho ímpar, singular, no panorama literário.

Dora Gago é professora

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