Entramos no último ano de mandato autárquico e, como manda a tradição, depois de três anos quase apáticos, regressa o pandemónio das máquinas de obras e o cheiro intenso a alcatrão um pouco por toda a região, transformando quarteirões em estaleiros.

As tradições, como manifestações culturais que são, serão para manter e fazem parte do jogo político, dito democrático, do poder autárquico. Obras há muito pedidas e esperadas, porque efetivamente necessárias, mas sucessivamente adiadas para altura eleitoralmente mais oportuna, materializam-se gradualmente, sempre tendo como objetivo uma inauguração a dois ou três meses do acto eleitoral.

Este estratagema de manutenção do poder, baseado na comprovada memória curta dos eleitores conjugada com o momento de felicidade sentida pela resolução de um problema antigo, começa a deparar-se, cada vez mais, com o problema da multiplicação. Enquanto em eleições anteriores esta estratégia cingia-se a uma ou duas grandes obras concelhias emblemáticas, que causavam transtornos numa área limitada e com alternativas existentes, neste momento o poder é disputado bairro a bairro, quarteirão a quarteirão, rua a rua, provocando o adiamento de praticamente todas as obras para a mesma época da caça ao voto, mergulhando os concelhos e as suas populações no caos.

Circular em algumas localidades transformou-se numa epopeia labiríntica, com trabalhos simultâneos em diferentes vias estratégicas, sem qualquer articulação ou voz de comando. Cada detentor de poder decide em função do seu interesse individual, sem qualquer ótica global de cidade ou de região.

Em alguns concelhos do Algarve, chegamos ao absurdo de perda de mais tempo no percurso de meia dúzia de quilómetros na entrada e saída da localidade, do que num itinerário de sessenta quilómetros entre cidades. Deslocações habituais de meia hora passaram a demorar mais de uma hora, muitas vezes com retenções em meros quarteirões entupidos pela falta de alternativas viárias.

A falta de articulação entre as intervenções arrisca-se a provocar o efeito contrário ao pretendido. O que poderia ser visto como espírito de iniciativa e dinâmica, pelos efeitos nefastos e sucessivos que produz, começa a provocar ódio e repulsa, não por as populações considerarem essas intervenções desnecessárias, mas porque a sucessão de entraves e contratempos provocados alimentam o stress e levam ao desespero.

A memória do eleitorado é tradicionalmente curta, mas essa característica não é eterna. O avolumar de obras eleitoralistas poder-se-á mostrar tão perverso e nefasto, quanto os também tradicionais três anos de quase inércia.

Nuno Campos Inácio é editor e escritor

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