A D. Selene é uma mulher de rotinas. Trabalha no escritório de contabilidade aqui ao lado da pastelaria. Vejo-a chegar e sei que, dentro de uma hora, virá tomar o pequeno-almoço: um croissant com queijo, aquecido, e um galão morno. É assim desde que me lembro. Come ao balcão. Diz que é porque vai passar o resto do dia sentada, mas desconfio que seja porque gosta dos dois dedos de conversa matinais.
Dizem os colegas que aqui vêm que a D. Selene é de poucas palavras. Ela, no entanto, explica que não gosta é de lhes dar muita confiança:
– Esta juventude, dá-se-lhes um dedo, querem logo o braço. Sabe como é.
Além do mais, ouve mal. Os colegas evitam o incómodo de se baixarem para lhe gritar ao ouvido. Ela, o de esticar o pescoço e fazer cara de chupa-limão.
Consta que, daquela porta para dentro, não é fácil arrancar-lhe um sorriso. Que, quando o tema é trabalho, a surdez parece agravar-se. Bem podem explicar e voltar a explicar, aumentar o volume, gesticular:
– Escreva! Mande-me um e-mail que eu já vejo – pede.
Os colegas, contrariados, enviam as mensagens, sabendo que ela responderá destacando a amarelo, no corpo do texto, os erros de português.
Hoje, entrou acelerada:
– Um croissant com queijo, aquecido, um galão morno e uma pata de veado.
– Um bolo, D. Selene? Nem parece coisa sua – digo tão alto quanto consigo.
– Não me diga nada, que ainda o Halloween não chegou e já só vejo bruxas e lobisomens... Se soubesse os nervos que tenho! Isto só lá vai com bolos. Não sei de onde saiu esta gente – responde, enquanto vai limpando as migalhas que caem no balcão. – Anda uma pessoa no ginásio para depois vir estragar tudo por causa destas almas assombradas. É que não sabem fazer nada, nem têm vontade de fazer. Só são bons para dar à língua! Nem escrever sabem...
Encosto-me ao balcão, vou ouvindo o desabafo e digo-lhe, meio a brincar, meio a sério, que ao menos tem a sorte de ouvir mal:
– Ah, disso não tenha dúvida. E se aqui ajuda, imagine o jeitão que me deu no casamento – disse, soltando uma gargalhada. – Se ouvisse tudo, nem três anos tinha durado, quanto mais trinta.
Parece mais relaxada. Aproveito para lhe perguntar se nunca pensou em usar um aparelho. Responde que experimentou em tempos, mas nunca se adaptou:
– É muito nova para viver assim, D. Selene. Não se aflige no trânsito, por exemplo? Não tem medo de ser atropelada?
Pousa o que resta do bolo, inclina-se sobre o balcão e começa a contar-me uma história que tem o seu pai como protagonista. No início dos anos sessenta, o jovem Lopes foi chamado à inspeção. A Guerra do Ultramar estava nos primórdios e recrutavam-se soldados que teriam Goa como destino. E Goa era longe. Tão longe que ficava no mapa das caixinhas, como chamava à Carta de Portugal Insular e Ultramarino. Goa. Tudo o que sabia daquele lugar é que era distante, diferente e perigoso. Era mecânico de bicicletas na aldeia. Nunca tinha sequer visto o mar. Que lhe interessava a ele o Império? O desinteresse não era, porém, recíproco. O Império precisava dele. Chegou a carta e que remédio senão ir. Tanto trabalho na oficina. Tanta falta que aquele dinheirinho fazia lá em casa.
Na véspera, depois do trabalho, foi até à venda. Por entre copinhos de medronho, um parente afastado disse-lhe que quem tinha sorte eram os surdos. Ficavam todos livres da tropa. Conhecia dois que tinham ido à inspeção e não os quiseram para nada. Decidiu-se logo ali:
– Nem um pio, que aqui o Lopes só tem a 4.ª classe, mas não é parvo.
Durante três dias e três noites, não lhe deram descanso. Interrupções do sono, gritos de alarme, cães que apareciam de surpresa, ameaças. Mas o medo da guerra era maior. Aguentou-se. “Surdo-mudo”, ficou registado.
– E safou-se? – perguntei.
– O que disse? Mais alto. Já sabe que sou dura de ouvido – lembrou.
Sílvia Quinteiro é professora
Crónica publicada em: