Desde meados dos anos 60 do século passado têm havido em Portugal abordagens governamentais no sentido de aplicar políticas de planeamento ao uso dos solos. Começou pelos chamados Planos de Fomento – com várias edições –, mais tarde a própria Constituição Portuguesa e, em 1998, a Lei de Bases da Política de Ordenamento do Território e Urbanismo, tendo posteriormente surgido o Programa Nacional da Política de Ordenamento e sucessivas leis regulamentadoras, até aos dias de hoje. Em todos estes diplomas, o conceito de ordenamento de território surge como uma necessidade de aplicar políticas públicas com vista à boa gestão dos solos, à redução das assimetrias regionais ou a garantir o harmonioso desenvolvimento, articulando a actividade económica, o bem-estar das comunidades e os recursos naturais.
Seria de esperar, pois, ao fim de quase 70 anos, que as regiões tivessem evoluído no sentido de resolver essas assimetrias e garantir uma correcta gestão territorial. Errado. A realidade mostra-nos precisamente o contrário. Estamos hoje perante um total colapso no que ao ordenamento do território diz respeito e não se antevê qualquer reação correctora por parte das entidades governamentais.
A indústria imobiliária, em associação com o dito «turismo de qualidade», expande-se com tal voracidade na região, ao ponto de nos deixar atónitos. No prazo de poucas semanas ficamos a saber que vários empreendimentos de média e grande dimensão então em construção no Algarve, como se não houvessem já centenas deles, alguns dos quais mesmo ao lado dos agora anunciados. Somente em Lagos são três os hotéis em instalação, dois da cadeia Hilton e um Marriot, mais outro em Alvor, Faro e Portimão. Fora todos aqueles que têm sido apresentados, a conta-gotas, em todo o litoral e até na beira-serra. São milhares de novas camas às quais há que juntar ainda outras milhares resultantes da construção dispersa.
Os impactes cumulativos não são tidos em conta e a capacidade de carga da região menos ainda. Onde está a água para saciar todos estes projectos? E a mão-de-obra? E quanto à mobilidade na região e à pressão sobre as infra-estruturas públicas? Alguém pensou nisso? Se dúvidas existem sobre estes aspectos, recomendo uma visita a algumas praias da região, mesmo agora, no Outono, para verificar como estão os estacionamentos, o estado de manutenção de casas de banho ou ainda a quantidade de lixo no chão. São apenas uns meros e simples exemplos.
Mas um outro colapso está também a dar-se no interior. Aí de natureza diferente, ainda que com fortes ligações ao que antes foi relatado. A incontrolável propagação de centenas de casas amovíveis, contentores, barracas e afins, completamente à margem da legalidade, está a tornar o barrocal algarvio numa potencial favela, com óbvios efeitos na paisagem e não só. Este crescente polvilhamento de cabanas nas zonas rurais está a alimentar negócios de especulação dos solos, para venda ou arrendamento, face à ineficácia da fiscalização e da contra-ordenação. Quem hoje pretenda adquirir um terreno para fazer agricultura prepare-se, pois vai assustar-se com os preços em vigor.
A situação é, no mínimo, alarmante. E injusta, naturalmente. Sobretudo para todos aqueles que procuram, pela via legal e «normal», instalar-se nestes sítios e que não o conseguem por diversos motivos, nomeadamente pela pesada burocracia e a demora nos processos ou pelos elevados preços das habitações.
Ambas situações estão intimamente associadas e ambas derivam, em grande medida, do problema que hoje tanto se fala: a falta de habitação e a preços ajustados. A fraca oferta de habitação pública a preços controlados e a poderosa actividade imobiliária, associada ao negócio especulativo, o Alojamento Local, os incentivos aos Residentes Não-Habituais ou os Visa Gold tem levado ao aumento exponencial dos preços das casas, tanto para venda ou arrendamento. Inclusive das ruínas. Tal tem levado a que muitos encontrem como única solução a instalação de estruturas amovíveis no campo, independentemente se os solos estão sobre leitos de cheia, em reserva agrícola ou ecológica, em sítios de Rede Natura, etc. Nada está a impedir esta metastificação do espaço rural e as consequências vão ser dramáticas, tanto ao nível ambiental, social ou económico.
Perante esta total ausência de planificação e gestão territorial, os municípios têm sido, por um lado, espectadores inoperantes, mas também, em grande medida, culpados. Dormiram anos a fio sobre o problema da habitação – que no Algarve é conhecido há décadas – e acolhem, de mãos abertas, os empreendimentos turísticos e as centenas de construções, pois é daí que advêm as taxas de IMI e IMT que mantêm esses organismos e suas «máquinas de entretimento» a funcionar.
Sim, estamos perante um colapso. Um colapso moral, legal, social e ambiental, causado por uma profunda falha de gestão territorial. Atingiu-se um ponto que dificilmente poderá ser revertido. Mas, a bem de um futuro melhor, pode ainda ser rectificado ou remediado. É isso que no mínimo se exige. Já.
João Ministro é engenheiro do ambiente e empresário
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