É inacreditável o tempo que passamos a pensar nos nossos receios e a falar neles. Procuramos conhecê-los, percebê-los, determinar a sua origem e razão de ser. Dissecamo-los, talvez numa tentativa de expor as fraquezas do inimigo. A morte, as perdas, o envelhecer. Ai, o envelhecer… O medo que temos de perder a juventude. E, curiosamente, ao invés de evitarmos o assunto, fazemo-lo presente a toda a hora. Conversas, romances, poesia, filmes, séries, ensaios, documentários... Não perdemos uma oportunidade para colocar o dedo na ferida. Não porque a queiramos avivar, acredito. Mas como forma de exorcizarmos esse medo. Uma espécie de vacina. De procura de imunidade.

A forma como o tempo desfigura os outros espanta-nos. Como pode aquele colega de escola ter envelhecido tanto? Ninguém diria que temos a mesma idade. Não estou careca como ele. Não estou barrigudo como ele. Não tenho aquele ar pesado. Nada como confirmar. Um primeiro olhar e percebemos que é melhor descolar o nariz do espelho. Para quê o exagero? Um passo atrás. Pronto! Mal se veem os vincos que há instantes emolduravam os lábios. Mão estrategicamente colocada debaixo do queixo. Um sorriso alvo. Caríssimo, mas perfeito. Pequenas sombras acastanhadas teimam em desmentir a frescura da imagem. Mais um passo atrás. Desapareceram. Não, não estamos velhos como eles. Nem pensar!

Vamos repetindo o que ouvimos: que os 50 são os novos 30; que ser velho é uma questão de mentalidade… e nem duvido que haja por aí um livro de autoajuda a explicar que o tempo só passa se nós deixarmos. Que só envelhece quem quer. A morte, lembram-nos repetidamente, é só para quem não dá luta. Essa está resolvida. Sendo, porém, a minha fé nesta literatura muito diminuta, assaltam-me algumas dúvidas: Quando é que somos velhos? Quando os filhos entram na universidade? Quando casam? Quando somos avós? No dia em que dizemos “Lembro-me da minha avó com a idade que tenho agora”? Ou será que ser velho não tem nada a ver com os outros e, afinal de contas, não são os filhos, nem os netos, os pais ou os avós, e nem sequer a calvície dos colegas de liceu que nos dizem que lá chegámos? Será quando nos aposentamos? Quando o ranger das articulações se torna audível? Quando o médico de família começa a prescrever de cor a «medicação habitual»?

Nesta matéria, não sou diferente de ninguém. Há fases em que tenho o assunto mais bem resolvido do que noutras. Aconteceu-me há dias perceber um sinal de que boa parte do caminho está feita. E não foi o resultado de uma reflexão profunda, de um processo de meditação ou de um retiro espiritual. Descobri-o de uma forma banal. Tão banal quanto possível. Numa ida às compras. Entrei numa loja de roupa à procura de um casaco para a estação que se avizinha. Peguei num que me saltou à vista. A funcionária da loja, solícita, aproximou-se e convenceu-me a experimentá-lo. Vesti-o. Dei uma voltinha em frente ao espelho.

– Está a ver? Parece que foi feito para si. E tem aí um casaco que dura uma vida – disse.

– E quanto tempo é uma vida? – perguntei.

– Ah, aí uns 20 anos ou mais – respondeu.

Pensei em como só mesmo alguém tão jovem pode achar que duas décadas são uma vida. Mas talvez não fosse isso, talvez ela, ao olhar para mim, tivesse feito contas. Será que ouvi mal e ela disse “tem aí um casaco que dura a sua vida”? Comecei a pensar que 20 anos são 20 outonos, 20 invernos... A ideia de comprar um casaco que dura uma vida afigurou-se-me, de súbito, absurda. Usar o mesmo casaco em todos os invernos que tenho pela frente… Deprimente! Mórbida, mesmo!

O casaco era lindo. Bom tecido. Belíssimo corte. Assentava-me, de facto, como uma luva. Devolvi-o ao cabide. Agradeci a ajuda e saí da loja. Entrei noutra. Bastante mais modesta. Comprei um casaco por um quinto do preço. Engraçado. O corte da moda. A cor da moda. Para o ano nem se pode ver. Perfeito!

Sílvia Quinteiro é professora

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