“Sometimes it’s hard to be a woman”, canta Mississippi Tammy Wynette no começo de Five Easy Pieces, um dos primeiros filmes dirigidos por Bob Rafelson (que produziu, entre outros, Easy Rider, de 1969). Antes de se ouvir o verso que abre a canção, a banda sonora é feita de ruídos de maquinaria: uma escavadora monstruosa, torrões de terra a cair. A comandar a máquina, de capacete branco protetor e camisa de ganga clara («blue colar», ma non tropo, é o que afirma o figurino), os olhos postos no céu que é a pá desmesurada que maneja, está alguém cuja fama estava também a começar, e uma personagem que era nada mais do que a aparência física da paisagem, do que vestia, do contexto laboral em que se apresentava. Passa um minuto inteiro – vê-se outros homens, tubagens ligadas, o tempo a passar, o dia de trabalho que termina – antes de surgir na imagem o título do filme e se ouvirem os primeiros acordes, em tom country, de «Stand by your man», o tema que, em 1968, fora campeão de vendas durante três semanas consecutivas (pouco mais de um mês depois de ter sido lançado). A canção era provavelmente o elemento que o público mais depressa reconheceria: às vezes não é fácil ser mulher e dar o teu amor a um homem só, mas lembra-te que ele não é mais do que isso, um homem, e dá-lhe o teu apoio. Parece estar tudo errado, nos dias de hoje, com a mensagem que ali passa: um amor incondicional por alguém cuja identidade é inferiorizada; o aprisionamento de indivíduos uns aos outros, as menos sólidas justificações para essa vida difícil. Mas a melodia incita, vai desde a dolência do início até ao encorajamento do refrão, batido em cadência forte, como se fosse a afirmação da vida daquela mulher (a cantora que o popularizou parece ter passado também por maus bocados), ou de uma feliz, muito justa razão de ser – que, descobre-se desde o título, consiste em dar apoio ao outro. O filme começa a mostrar apenas o trabalho dos homens; mas aquela canção, numa frágil voz feminina, exalta o poder anímico e a anulação própria em favor de alguém. Contrasta com a força física, com os braços que agarram tubos e máquinas, ou as pernas que sobem andaimes e estruturas. “Apoia o teu homem”, vai soando, enquanto eles, sozinhos, sabe-se lá o que fazem pelas mulheres, ou mesmo por si próprios.


Esta é só uma das «peças» (será uma das que o título refere?) que o filme de Rafelson entrega a quem o vê para fazer parte de um quebra-cabeças sobre o que pretende cada ser humano, sobre de onde vem a insatisfação que o leva a demolir os caminhos da sua vida enquanto constrói os que outros hão de trilhar. O que quer Robert Dupea? A sua desorientação resulta do mundo que pressente perdido, de olhar para a frente e não conseguir vislumbrar o futuro? A meio do caminho entre o lugar onde escolheu trabalhar e a casa onde vive o pai, que a doença já alheou de tudo, Robert dá boleia a duas mulheres: uma delas é Palm Apodaca (feita pela incrível Helena Kallianiotes), um furor que pretende chegar ao Alaska, convencida de que o branco da paisagem de lá lhe oferecerá a pureza que a Califórnia já perdeu: parte da viagem leva-a, no banco de trás, a queixar-se do derrame consumista que há de acabar com a Terra (“Têm tantas lojas e coisas e porcaria cheia de merdas”) e da poluição que acompanha o desfile final. É um diálogo – ou melhor, o monólogo de um coro-de-voz-única cujos espectadores estão entre o indiferente (Robert, por estar consciente de tudo o que as palavras de Palm significam) e o incrédulo (Rayette DiPesto, colagem do nome da cantora do início, que nem parece discernir o alcance do que ouve). Apodaca é uma Cassandra – hoje, irónica e tristemente vingada: acredita-se no que profetizou, mas a concretização das profecias implica que ela, assim como todos os que a inventaram (Rafelson, Nicholson, Wynette, ...) têm os dias contados.

Ana Isabel Soares é professora

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Foto: Vasco Célio