Sou a primeira a chegar. Entro na sala de espera e escolho um lugar junto à janela. O dia está cinzento e chuvoso. Não lhe vou chamar triste. Gosto da chuva. Gosto de ver chover. Melancólico. A sala enche-se aos poucos. Quem entra murmura qualquer coisa. Quem está responde com um ruído indecifrável. Depois, o silêncio. Mas dura pouco. Rapidamente duas senhoras sentadas ao meu lado iniciam uma conversa. As dores nos ossos. As dores que não as deixam. Uma delas já nem encontra «exposição» para dormir. Falam de uma tal Jacinta que tinha os mesmos sintomas e acabou numa cadeira de rodas. Entrevadinha, coitada. O que lhe vale é a filha, que é uma joia. A conversa vai longa quando finalmente percebo que as mulheres de que falam são personagens de uma telenovela. À minha frente, uma mulher de meia-idade lê um livro de autoajuda. Quem sabe? Fico à espera de que de repente o rosto se ilumine, ela se levante e vá embora. Mas não, pela cara, não me parece. Um rapaz caminha de um lado para o outro. Vai repetidas vezes ao bebedouro encher o copo de água. Bebe com visível sacrifício. De vez em quando, uma funcionária espreita a sala e diz-lhe:
⎼ Vá bebendo aguinha, sim?
E ele para trás e para a frente, coitado. Andar de pardalito. Ar de aflição.
Junto à senhora que continua tentar autoajudar-se, um casal de idosos discute. Primeiro baixinho, depois em voz alta. Ela diz-lhe que não vale a pena vir ao médico se não faz nada do que ele manda. Ele resmunga. Ela insiste. Ele desabafa:
⎼ Vim cá no mês passado, disse-me que se parasse de fumar ganhava 10 anos de vida. 10 anos sem fumar! O homem sabe lá o que diz. Agora com esta idade é que querem mandar em mim? Mas para que raio quero eu 10 anos sem fumar?
Há uma gargalhada na sala. O ar fica mais leve. Ainda assim, sinto-me estranha neste lugar. Uma verdadeira extraterrestre. Digo muitas vezes que não tenho feitio para doente. E menos ainda para estar sentada entre pessoas que sacam sintomas da cartola como quem saca o às de trunfos num jogo de sueca. Ponho-me a pensar em como aqui cheguei. Como entrei aos poucos para este grupo tão peculiar que são os frequentadores assíduos dos consultórios. Como, aos poucos, as consultas começaram a ser precedidas de análises marcadas entre elas. E lá ia eu, com umas folhas soltas na mão. Mais umas análises, mais uns exames, medicação e, esporadicamente, surgia qualquer coisa que era melhor tirar.
Mais recentemente, cada visita ao médico passou a ser seguida de um volume considerável de exames. A pequena pasta transformou-se no volume d’O Senhor dos Anéis que tenho pousado no meu colo. Penso em como é curioso que a pasta vá crescendo à medida que o número dos órgãos do meu corpo vai reduzindo. Parece-me absurdo que quanto menos de mim existe, mais exames tenha de fazer.
Primeiro as amígdalas. E já agora os adenoides. Não estavam lá a fazer nada. Mais tarde, o apêndice. Que mal faz? Afinal de contas só se dá por ele quando traz problemas. Aos poucos, fui descobrindo que a obra perfeita de Deus está, afinal, repleta de acessórios dispensáveis. Basta um rim, a tiroide pode sair, basta um ovário, depois já nem esse é necessário. O útero deixou de ter utilidade… Talvez não seja coincidência o meu médico e a minha cabeleireira terem o mesmo sobrenome. Quando é para cortar, entusiasmam-se. A diferença é que ela leva menos de pintar o cabelo curto. Ele, cada vez tem menos paciente para examinar, mas o preço da consulta é sempre o mesmo. E voltando a olhar para a pasta que equilibro sobre o joelho, vem-me à mente outra dúvida: Se ele realmente corta tudo o que diz, como é que peso sempre o mesmo? As salas de espera são lugares propícios a reflexões profundas.
Os meus pensamentos são interrompidos pela voz do Sr. Joaquim. Vem alterado. Amparado pela mulher a apoiado na canadiana, protesta:
⎼ Agora já nem o copinho de vinho ao almoço me querem deixar beber. Mas eu sou lá algum moço pequeno para mandarem em mim. Era o que faltava agora! Mais vale matarem-me logo!
A mulher, envergonhada, tenta justificar-se:
⎼ Ele é diabético, tem o colesterol nas últimas, já teve de tirar a vesícula, e não tem juízo nenhum!
Caminham em direção à porta de saída. A funcionária chama o meu nome. Levanto-me e sigo-a a medo. A vesícula! Ainda não me tinha lembrado da vesícula.
Sílvia Quinteiro é professora
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