Como ponto prévio, num momento em que qualquer opinião pode ser vista como um exemplo de radicalismo, importa esclarecer que não sou negacionista no sentido de recusar que as ações humanas tenham influência no clima; no entanto, estou bastante longe de me rever no núcleo daqueles que consideram qualquer acontecimento climático mais extremo como um efeito das apregoadas alterações climáticas.

Quem acompanha o meu trabalho sabe que há perto de duas décadas que me dedico à realização de pesquisas documentais, recorrendo a documentos antigos, muitos deles inéditos no estudo e divulgação. Entre esses documentos encontram-se alguns administrativos, como sejam as actas de vereação. Um estudo aprofundado desses documentos locais permite identificar cabalmente a existência de ciclos climáticos, ou climatéricos.

O concelho que tenho pesquisado mais profundamente, nos últimos anos, é o de Vila do Bispo, onde se encontram as charnecas que servem de habitat ao «Triops Vicentinus», um crustáceo de água doce temporária, que pode atingir 14 cm. Este animal, visto como um autêntico fóssil vivo, adaptou-se ao clima agreste da região vicentina de uma forma bastante curiosa: os seus ovos conseguem sobreviver no solo durante décadas, só eclodindo quando a chuva mais abundante forma os charcos indispensáveis às suas condições de vida. Não será necessária uma especialização em biologia para percebermos que, se um animal evoluiu ao ponto de produzir ovos capazes de sobreviverem ao longo de décadas à espera de água suficiente para a formação de charcos, é porque, ao longo do tempo, ciclicamente, existiram secas extremas intercaladas com episódios de chuvas intensas.

É isso mesmo que, desde o século XVIII, conseguimos documentar perfeitamente a partir de um levantamento sistemático da informação contida nas actas de vereação desse concelho. A períodos de grandes secas, que chegaram a durar três e quatro anos sem um dia de chuva, seguiam-se grandes tormentas, que destruíam habitações, rebentavam diques e pequenas barragens e inundavam os campos, havendo igualmente referência à ocorrência de um furacão, isto tudo entre os séculos XVIII e inícios de XX, numa época em que a intervenção humana sobre o clima, pelo menos comparativamente com a atual, seria residual.

Alargando o âmbito das pesquisas a outros concelhos, temos fenómenos extremos noticiados ciclicamente. Por exemplo, em 26 de Outubro 1722 encontramos referido um furacão, que, de acordo com o relato “excedeo o de 30 de Setembro de 1672”. Entre 7 e 9 de Fevereiro de 1731, nova tempestade devastou Portimão e Albufeira, que perderam muitas casas, tendo a água do mar invadido os campos mais de um quarto de légua (c. 1.200 metros), com um metro e meio de altura.

Mesmo as inundações dos últimos dias em Valência estão longe de serem inéditas. Nos anos de 1321 e 1328, grandes inundações provocaram o colapso de numerosas casas; em 1517 ruíram centenas de casas e caíram três pontes, numa intempérie que colheu centenas de vidas. Entre 1321 e 2024, registaram-se onze grandes intempéries que provocaram grande destruição e perda de vidas na cidade de Valência. Ainda que não tenham ocorrido com um espaço cronológico fixo, permite-nos identificar uma ou duas ocorrências extremas em cada século, ou seja, a existência de ciclos climáticos de maior intensidade a cada meio século a um século. Este espaço de tempo faz com que estes fenómenos se apaguem da memória coletiva, com resultados desastrosos.

A sucessão de anos secos faz perder a memória dos rios e ribeiras com grande caudal. Zonas que ao longo dos séculos eram propensas a inundações, estão apinhadas de habitações, ribeiras de grande caudal foram encanadas, encurtaram-se canais ribeirinhos com a construção de muralhas, acabaram as limpezas das ribeiras, barrancos e linhas de escoamento. É óbvio que, nestes períodos cíclicos, a chuva virá e procurará o seu caminho natural. Se ele não existir, criará outro alternativo.

Será sempre mais fácil atribuir a culpa da destruição provocada pelas intempéries às alterações climáticas, do que à incúria humana da construção desenfreada à beira rio, à beira-mar e em áreas de inundação. No entanto, a maior interferência humana para a ocorrência de desastres com a dimensão do de Valência é mesmo a má gestão que faz do território. Com a agravante de não ser um problema exclusivo de Valência.

Nuno Campos Inácio é editor e escritor

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