Aflição de ser água em meio à terra
E ter a face conturbada e móvel.
E a um só tempo múltipla e imóvel.
Hilda Hilst
Nunca parti nada quando era miúda. Ao contrário de um dos manos que partiu o braço e, quando tirou o gesso, voltou a partir porque decidiu descer uma escada, na casa dos avós, a saltar só com uma perna. De longe, vejo-me como uma miúda calma, a brincar de bonecas e a sair à rua, muito cuidadosa. Certamente é uma imagem falseada, a memória prega-nos peças. Mas o certo é que nunca parti nada. Há uns anos consegui a proeza de partir 3 dedos do pé pela base – o que foi deveras complicado, tinha uma viagem a Florença e lá fui de pé-coxinho. Mas, numa bela manhã, em que não tinha trabalho, esqueci-me do pé e fiz uma caminhada pelo centro da cidade. O que me rendeu dores variadas que me açoitam até hoje. Já o ombro, fraturei numa queda estúpida. E não são estúpidas todas as quedas? Mesmo as metafóricas, que por sinal, muitas vezes, são mais dolorosas. Uma queda estúpida que me deixou privada, temporariamente, do uso do braço esquerdo. Um tempo que é mais longo que o tempo normal. Um tempo que se multiplica por 10. Um tempo que não passa. Lembrei-me de uma frase da peça Um Bonde chamado desejo. Ela diz: sempre dependi da bondade de estranhos. No meu caso não são estranhos, mas amigas que se revezam e que ajudam a fazer coisas tão básicas como passar a manteiga no pão. Tentei valer-me da Siri, que não costumo usar. Mas temos um problema de comunicação. Ela não percebe, exatamente, o que peço, e escreve mensagens que, de tão absurda, soam poéticas. Pedi-lhe, educadamente: Siri, escreva, por favor, esta mensagem – bom dia. Depois do bom dia, um sol. E lá seguiu a mensagem de bom dia mais poética que um dia enviei: Bom dia depois do bom dia um sol. No outro dia queria que ela me relembrasse a versão brasileira do Parabéns a você. Depois de tentativas infrutíferas, cantei um bocado da música. Ao que a Siri responde – obrigada pela serenata! Não trabalhamos nada bem juntas, mas pelo menos, nos divertimos.
Mirian Tavares é professora
Crónica publicada em:
Foto: Isa Mestre