Por alturas da morte de Michelangelo Antonioni, veio-me à ideia a memória de um filme seu. Uns anos antes, o meu irmão – professor no curso de Arquitetura, na Universidade de Évora – telefonara-me com um desafio. Pedia-me que preparasse uma aula para uma das suas turmas, sobre arquitetura no cinema, e que escolhesse um filme para ilustrar o tema. Entusiasmada com o exercício, num impulso, atirei o título – «Zabriskie Point»! Depois de desligar, joguei as mãos à cabeça e tentei perceber por que cargas de água me teria lembrado daquele filme em particular, quando me parecia que muitos outros seriam mais óbvios acompanhantes de uma preleção que juntasse cinema e arquitetura. Vira o filme de Antonioni uns dez anos antes e não me recordava de quase nada dele, a não ser imagens num deserto e pares de amantes a rolar dunas abaixo. Lembrava-me da música, ou de tons, tudo a congregar-se no meu cérebro como o mais próximo que tinha experimentado de uma alucinação. De resto, era mesmo uma nuvem. Sobretudo, no dia daquele telefonema, o que me ficou a preocupar foi que não me vinha à memória nada que no filme tivesse a ver com arquitetura. Ainda assim, convenci-me de que teria de haver um motivo pelo qual a minha resposta fora tão imediata e assertiva – e dispus-me a procurá-lo, naturalmente revendo a obra.

Foi isso mesmo que tratei de fazer, para em mim refazer a associação que explicasse a determinação como me surgira em resposta ao binómio «cinema e arquitetura». Tratava-se de um filme sobre o espaço – disso não tinha dúvidas. Na altura, o que tinha disponível para visionamento era uma cassete VHS, que comprara nos Estados Unidos; portanto, num formato não europeu. Hoje talvez não se pense nisto, mas à altura essas diferenças exigiam aparelhos com capacidade de leitura de formatos diferentes. Mas não pensei muito no assunto, precisamente porque tinha comigo um desses leitores de DVD. (A banda sonora, que entretanto também encontrara, ouvi-a e continuo a ouvir à exaustão. Nem que fosse só pela história do muito que Antonioni buscou a sonoridade precisa para as imagens que já tinha na ideia, os sons country à mistura com a guitarra de Jerry Garcia ou os insistentes desvarios de Pink Floyd, fazem deste um disco histórico, no meu fraquinho entender).

Ora, assim que revi o filme, apercebi-me de que um dos assuntos ou fios da intriga é a construção de um condomínio de luxo no deserto de Death Valley, na Califórnia. O filme era sobre o espaço, tal como recordava, sobretudo sobre um espaço não urbano, mas igualmente sobre maneiras e receios de encher de gente um espaço – o deserto – que, além de inumano (inurbano?), é inóspito.

Só a caminho da dita aula na Universidade de Évora, quase a chegar ao fim do km 200 dos poucos mais que ela dista de onde parti, é que pensei no formato da cassete que levava – e me perguntei se teriam ao dispor um leitor de VHS que permitisse mostrar aquela versão do filme. Por sorte, lembrara-me de levar comigo o CD duplo com a banda sonora, e decidi que, enquanto se procurava o bendito leitor, começaria a aula a falar da música de Jerry Garcia e de como ela habitava o espaço do silêncio. Paul Valéry viu bem a relação entre a música e a arquitetura quando, em Eupalinos ou l’architecte, coloca na boca de Sócrates a frase: “quero ouvir o canto das colunas, e ver surgir no puro céu o monumento de uma melodia”. É que, nas obras arquitetónicas, assim como nas musicais, é inescapável que existamos e nos movimentemos envolvidos por elas (em 1924, data dessa peça de Valéry, a música e a arquitetura eram as artes mais imediatamente reconhecidas como imersivas).

Algum tempo depois, imersos na ideia do filme através da banda sonora (e resolvido o busílis videográfico), a turma mais eu estivemos em silêncio, numa salinha de teto baixo abobadado, reverencial, monástico: vimos, nas imagens de Zabriskie Point, o deserto, os manifestantes ainda de anos sessentas, a sua prisão, acompanhada pela aflição da guitarra, depois a sua conformação, o grito de Roger Waters, o céu na noite, o céu no dia, o Vale da Morte e uma maravilhosamente ofensiva moradia a explodir em estilhaços no final, outra vez e outra, repetida à cadência da música e à vitória do deserto onde dois corpos se tinham multiplicado em inúmeros.

É Zabriskie Point um filme sobre arquitetura? Se, como escreve Robert Harrison em The Dominion of the Dead, “na sua capacidade de formar mundos, a arquitetura transforma o tempo geológico em tempo humano, o que é outro modo de dizer que transforma a matéria em sentido” (p. 3), é exatamente isso que o arquitetónico filme de Antonioni faz.

Ana Isabel Soares é professora

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Foto: Vasco Célio